- Folha de S. Paulo
• Toda a sociedade paga hoje o preço de o PT ter se recusado a discutir uma trava nos gastos públicos
No início do governo Lula, nos anos de 2003 e 2004, o PSDB comportou-se praticamente como um partido da base de sustentação do governo. Diversos projetos importantes para o futuro do país foram apoiados pelos tucanos. Vale lembrar a minirreforma tributária, a minirreforma previdenciária, a Lei do Bem, a Lei da Inovação, todo o pacote de políticas que estimularam o crédito e a Lei das Parcerias Público-Privadas.
O então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, costurava a colaboração com possível ingresso da oposição na base de sustentação governista. Visto de hoje, após tudo o que ocorreu, é difícil imaginar tal situação. A história é feita pelos homens e não está escrita.
Palocci perdeu para José Dirceu e Lula, e o PT escolheu antagonizar partidos da centro-esquerda à centro-direita do espectro político-ideológico: PPS, PSDB e Democratas. Essa escolha obrigou as coligações do governo no Congresso Nacional a serem muito heterogêneas ideologicamente, cobrindo da esquerda à extrema direita.
Em razão da enorme heterogeneidade das coligações na era petista, optou-se por compartilhar menos o governo. A participação do PT nos ministérios e no governo em geral passou a ser muito maior do que seu peso relativo na coligação.
A literatura recente de ciência política mostra que os dois instrumentos que o Executivo tem para gerir o presidencialismo de coalizão –compartilhar governo e moedas de troca (principalmente a liberação de recursos para emendas parlamentares)– são substitutos, e não complementares. Quem emprega muito um deles emprega pouco o outro e vice-versa.
Nosso presidencialismo de coalizão transformou-se no atual presidencialismo de cooptação, tocado quase que exclusivamente no varejão da política. Mensalão e petrolão são consequência direta dessa escolha. Essa foi a primeira derrota de outro governo petista possível.
Havia em 2005 reconhecimento por parte de inúmeros atores políticos, da situação e da oposição, de que nosso contrato social projetava trajetória insustentável do gasto público e, portanto, que o aparecimento de gargalos e constrangimentos no front fiscal era somente questão de tempo.
A conversa prosperou, e um grupo de políticos –liderados pelo então deputado Antonio Delfim Netto e pelos ministros Antonio Palocci e Paulo Bernardo– propôs que a sociedade, por meio do Congresso Nacional, discutisse o tema. O objetivo era colocar uma trava na Constituição para que o gasto público parasse de crescer sistematicamente mais rápido do que o produto da economia.
Esse debate está sumarizado na publicação do Ipea de agosto de 2005, que não veio a público, intitulada "A qualidade da política fiscal de longo prazo". Textos de Delfim, Palocci, Paulo Bernardo, Tasso Jereissati e Fabio Giambiagi reconheciam o problema e estimulavam que se avançasse na direção da construção da trava legal ao crescimento contínuo do gasto público.
Já o texto do senador Mercadante, na mesma publicação, ia na direção contrária, considerando que primeiro vem o crescimento. O ajuste fiscal seria consequência. Logo em seguida, em novembro de 2005, a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, torpedeou o ajuste, qualificando-o como rudimentar.
A proposta ficou para os anais da história dos bastidores da política e caiu no esquecimento. Toda a sociedade paga hoje o preço da segunda derrota de outro PT que era possível.
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Samuel Pessôa, formado em física e doutor em economia pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV
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