- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
Está se iniciando uma nova onda de suspeições e de segredos. Declarações desses dias indicam que, para o novo governo, as pastorais sociais da Igreja Católica são suspeitas
O Gabinete de Segurança Institucional, da Presidência da República, desagregou a responsabilidade pela definição de documentos públicos como secretos e ultrassecretos. Agora, os gerentes dos segredos do país serão vários. Assim como os suspeitos são presumidos, os insuspeitos também o são.
De certo modo, vão espionar o Brasil suspeito e decidir o que, daquilo que o Brasil insuspeito suspeita, deve ficar escondido. Eventuais vítimas de bisbilhotice governamental não terão como saber se estão sendo espiados pelas frestas do poder.
Num país minado por informantes, oportunistas, delatores não premiados, até em sua versão primária que é a do bajulador, popularmente conhecido como puxa-saco, fica difícil entender a espionagem brasileira.
Muitos brasileiros gostam de escrever para o presidente, quem quer que ele seja. Nas cartas que eram endereçadas a Getúlio Vargas, por pessoas comuns, nos longos anos de seus governos, há muitas de delação. Vizinhos e até parentes que delatavam como comunistas pessoas simples e inocentes, que neles confiavam. Metidos a patriotas, bajulavam o chefe de Estado.
É compreensível que a segurança nacional seja um item inevitável da organização política moderna. Resta saber se a informação necessária à segurança do Estado será obtida e classificada por gente do ramo ou por amadores.
Muita gente na história política deste país, sobretudo a partir de 1937, tem sido perseguida ou cerceada com base em meras delações de dedos-duros e aproveitadores. E, claro, os próprios espionados ingenuamente expondo-se ao olho gordo dos James Bond de republiqueta. Em pesquisa, vi em processos do Tribunal de Segurança Nacional, do Estado Novo, Caio Prado Júnior negando vínculo com a nacionalista Aliança Nacional Libertadora. Porém, o processo tem várias fotografias do próprio acusado a fazer conferências públicas com enormes faixas da ANL adornando o recinto. Os espiões e delatores eram bons fotógrafos.
Não é coisa nova. Desde criancinha tenho notícias do que, sei hoje, é o chamado espião. Nasci antes da Segunda Guerra Mundial e vivi já em meus primeiros dias a consciência do que é o mundo dos segredos de Estado, das ocultações e mesmo das mentiras. Vivi em família o pavor do blecaute e da espionagem dos meganhas disfarçados. Percorriam as ruas do subúrbio de bicicleta, à noite, para monitorar pobres operários cuja vida se resumia ao trabalho duro na linha de produção.
Por aquela época, vez ou outra, corriam notícias de vizinhos e conhecidos que desapareciam ou eram presos. Um deles, um sapateiro espanhol, casado e com uma penca de filhos brasileiros. Muitos anos mais tarde, quando foram abertos à pesquisa os arquivos do Deops, a polícia política, encontrei suas fichas Seu grande crime era distribuir folhetos políticos na saída da estação ferroviária local no fim da tarde ou de manhã bem cedo. Delatado por um conhecido, foi levado para a cadeia, altas horas, de pijama, sequestrado na frente da família. Nunca mais o viram. Souberam depois que fora deportado para a Espanha e fuzilado pelo Exército franquista ao ser desembarcado no porto de Vigo.
Por aqueles anos, ainda no subúrbio, volta e meia encontrava-se pelas ruas centrais um sujeito já um tanto idoso, conhecido de todos pelo nome, que era tido como subdelegado de polícia. Tinha estranha mania. Ao cruzar com alguém, não dizia nem bom-dia, nem boa-tarde nem boa-noite. Apenas levava o dedo indicador ao olho esquerdo e puxava a pálpebra inferior. Gesto que indicava que a polícia estava de olho naquela pessoa. Não era um espião secreto, era um espião público. Fez isso durante dezenas de anos.
Quando, já adolescente, o vi pela última vez, levei um susto, a pálpebra inferior daquele olho tinha caído completamente, já não retornava ao lugar, o lado interior completamente exposto. Diziam que era castigo.
Quando, no governo Franco Montoro, o arquivo da polícia política foi aberto à consulta das vítimas, tive acesso às minhas fichas. Eu era delatado por alunos, que entregavam à polícia anotações feitas de minhas aulas na universidade. Constava que eu havia estado em manifestações em que não estivera. Na falta de informações corretas sobre um sujeito de Ribeirão Preto, de sobrenome invertido em relação ao meu, suspeito de subversão porque frequentava uma livraria, anotaram como pais dele os meus pais. Semialfabetizados espionando frequentadores de livrarias e professores universitários.
Está se iniciando uma nova onda de suspeições e de segredos. Declarações desses dias indicam que, para o novo governo, as pastorais sociais da Igreja Católica são suspeitas, o papa à frente. Por que não o próprio Deus, que é brasileiro?
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
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