Folha de S. Paulo
Na prática, traficantes, milicianos e Estado
compartilham os protocolos sobre quem deve morrer e viver
Décadas atrás, exposta numa galeria como escultura, havia uma corrente de metal fixada a um tronco por fibras. Essa ideia de uma corrente aprisionada nos retorna agora na notícia alarmante de uma penitenciária em vias de ser encarcerada por uma teia urbanística. Trata-se nada menos de um complexo com 25 unidades penais (hospitais, institutos e penitenciárias), localizado na zona oeste do Rio. O singular aprisionamento consiste no cerco da penitenciária por uma rede de moradias destinada a controlar, por proximidade e recursos eletrônicos, o cotidiano dos detentos.
O aparente acaso é, na verdade, efeito de uma
especulação imobiliária predatória e sintoma forte da ocupação espacial por
facções criminosas. A questão é nacional, mas o Rio extrapola, está conflagrado
pelo crime, quem erra de rua acaba morto. Em lugar nenhum do mundo, fora
situações de guerra, é concebível que mais de 70 por cento de um território
metropolitano possa ser controlado por bandidos. Aliás, "soldados de
Jesus", como se autodenominam os traficantes da Tropa de Aarão, referência
ao irmão mais velho de Moisés. Tal é o Complexo de Israel na zona norte.
"Peixão", o intocável tirano local, é um Netanyahu fora
do lugar.
Diante do mais-que-dantesco, causa
perplexidade a rejeição de governadores ao plano federal de um Sistema de
Segurança Único. Na superfície, efeito danoso da polarização política. Motivos
mais fundos, porém, lastreiam essa atitude regressiva, que desde o início da
República se configura como estratégia discursiva do Estado para
operacionalizar o genocídio do negro e das classes subalternas. "Foi o
‘topos’ da segurança pública que permitiu à elite brasileira operar a migração
integral da estrutura de poder colonial para a República, quando não podia se
ancorar na justificativa da superioridade ontológica" (Jorge Augusto em
"Modernismo Negro").
Entenda-se: a pretensa superioridade branca é
insustentável na modernidade republicana, o que deixa à retórica da segurança
espaço para funcionar como "dispositivo que agenciou a migração da violência colonial
para o século vinte", diz Augusto. Com a segregação espacial baseada na
ideia de raça, "o território marca então as fronteiras do exercício da
violência, onde se normalizam a precarização material e a insalubridade,
produzindo em larga escala a morte social e física da população negra e pobre,
como nas antigas senzalas".
Uma máquina de morte oficial transforma
cidades e florestas em campos minados para a cidadania. Os governadores que
reiteram a política de extermínio puro e simples não são só bolsonaristas, mas
comparsas de uma colonialidade voltada para o controle biopolítico da nação.
Reafirmam o desejo elitista de morte contra o povo urbano e os povos originais,
em especial em metrópoles como Rio e São Paulo, ou no agro do centro-oeste,
onde brota uma espécie transgênica de fascismo.
Na prática, traficantes, milicianos e Estado
compartilham os protocolos sobre quem deve morrer e viver. Uma parceria
necropolítica cuja matriz é a mesma da droga, em que a vítima é cúmplice
voluntário ou forçado do criminoso. Mas, como de praxe entre bandidos, algo
saiu de controle: tornando-se sistêmica, a violência ameaça a todos. É a
circularidade mítica, a cobra engole a própria cauda.
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