domingo, 19 de janeiro de 2025

A cidade acorrentada por facções - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Na prática, traficantes, milicianos e Estado compartilham os protocolos sobre quem deve morrer e viver

Décadas atrás, exposta numa galeria como escultura, havia uma corrente de metal fixada a um tronco por fibras. Essa ideia de uma corrente aprisionada nos retorna agora na notícia alarmante de uma penitenciária em vias de ser encarcerada por uma teia urbanística. Trata-se nada menos de um complexo com 25 unidades penais (hospitais, institutos e penitenciárias), localizado na zona oeste do Rio. O singular aprisionamento consiste no cerco da penitenciária por uma rede de moradias destinada a controlar, por proximidade e recursos eletrônicos, o cotidiano dos detentos.

O aparente acaso é, na verdade, efeito de uma especulação imobiliária predatória e sintoma forte da ocupação espacial por facções criminosas. A questão é nacional, mas o Rio extrapola, está conflagrado pelo crime, quem erra de rua acaba morto. Em lugar nenhum do mundo, fora situações de guerra, é concebível que mais de 70 por cento de um território metropolitano possa ser controlado por bandidos. Aliás, "soldados de Jesus", como se autodenominam os traficantes da Tropa de Aarão, referência ao irmão mais velho de Moisés. Tal é o Complexo de Israel na zona norte. "Peixão", o intocável tirano local, é um Netanyahu fora do lugar.

Diante do mais-que-dantesco, causa perplexidade a rejeição de governadores ao plano federal de um Sistema de Segurança Único. Na superfície, efeito danoso da polarização política. Motivos mais fundos, porém, lastreiam essa atitude regressiva, que desde o início da República se configura como estratégia discursiva do Estado para operacionalizar o genocídio do negro e das classes subalternas. "Foi o ‘topos’ da segurança pública que permitiu à elite brasileira operar a migração integral da estrutura de poder colonial para a República, quando não podia se ancorar na justificativa da superioridade ontológica" (Jorge Augusto em "Modernismo Negro").

Entenda-se: a pretensa superioridade branca é insustentável na modernidade republicana, o que deixa à retórica da segurança espaço para funcionar como "dispositivo que agenciou a migração da violência colonial para o século vinte", diz Augusto. Com a segregação espacial baseada na ideia de raça, "o território marca então as fronteiras do exercício da violência, onde se normalizam a precarização material e a insalubridade, produzindo em larga escala a morte social e física da população negra e pobre, como nas antigas senzalas".

Uma máquina de morte oficial transforma cidades e florestas em campos minados para a cidadania. Os governadores que reiteram a política de extermínio puro e simples não são só bolsonaristas, mas comparsas de uma colonialidade voltada para o controle biopolítico da nação. Reafirmam o desejo elitista de morte contra o povo urbano e os povos originais, em especial em metrópoles como Rio e São Paulo, ou no agro do centro-oeste, onde brota uma espécie transgênica de fascismo.

Na prática, traficantes, milicianos e Estado compartilham os protocolos sobre quem deve morrer e viver. Uma parceria necropolítica cuja matriz é a mesma da droga, em que a vítima é cúmplice voluntário ou forçado do criminoso. Mas, como de praxe entre bandidos, algo saiu de controle: tornando-se sistêmica, a violência ameaça a todos. É a circularidade mítica, a cobra engole a própria cauda.

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