Centro de alertas de desastres demanda
estrutura robusta
O Globo
Enquanto diferentes regiões do país sofrem
com tempestades arrasadoras, Cemaden tem quadro esvaziado
É um contrassenso o esvaziamento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) num momento em que estados e municípios de diferentes regiões do país se mostram vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, traduzidas em eventos cada vez mais intensos e frequentes. Como mostrou reportagem do GLOBO, para monitorar enchentes, deslizamentos de encostas, secas e outros flagelos, o centro conta com pouco mais da metade do quadro reivindicado (tem 96 funcionários, enquanto pleiteia 180).
Criado em 2011, após as chuvas torrenciais
que deixaram mais de 900 mortos na Região Serrana do Rio — as mais letais já
registradas no país —, o Cemaden tem papel importante no enfrentamento desses
fenômenos. O órgão concentra informações sobre todas as regiões, publica
boletins de risco, previsões meteorológicas e emite alertas às defesas civis. O
objetivo é permitir uma ação coordenada e mais eficaz na resposta aos
desastres.
Quando surgiu, o Cemaden fazia o
monitoramento de 286 municípios. Em 2012, a área de atuação foi ampliada para
821 — quase três vezes mais. Na época, foi pleiteado um quadro de 180
funcionários, o que nunca foi atendido. Hoje já são 1.133 cidades monitoradas.
Informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que há 19
cargos vagos por motivos de falecimento, aposentadoria, exoneração ou cessão.
Atualmente há dois concursos públicos para contratação de 24 servidores. Outras
11 vagas serão preenchidas com o Concurso Nacional Unificado. Mesmo assim não
se chegará ao número pedido.
Não é difícil imaginar a importância de um
órgão de monitoramento de desastres num país que tem sido fustigado por
tempestades devastadoras. Em abril e maio do ano passado, o Rio Grande do Sul
enfrentou as maiores cheias de sua história. As chuvas mataram mais de 180
pessoas e deixaram milhares desalojados ou desabrigados. Nos últimos dias,
cidades das regiões Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordeste têm registrado
volumes de chuva muito acima da média. Em Minas Gerais, onde pelo menos 15 já
morreram neste ano, mais de 80 cidades estão em situação de emergência ou
calamidade.
Informações sobre a possibilidade de chuvas
arrasadoras e mapeamento das áreas vulneráveis costumam ser fundamentais para
que as cidades se planejem. Evidentemente não é possível deter as enchentes,
mas é viável agir antecipadamente para retirar moradores de locais que serão
atingidos. Uma boa coordenação entre os diversos órgãos facilita o trabalho.
Isso é apenas parte da questão. Seria preciso também, com base nos
levantamentos, remover moradores que ocupam locais de alto risco, onde
deslizamentos são iminentes.
Compreende-se que a administração federal tem
seus desafios orçamentários e que o inchaço da já pesada máquina pública deve
ser evitado, em especial num governo que não se esforça para conter gastos. Mas
o Cemaden, cuja criação foi um avanço, precisa ter uma estrutura minimamente
adequada para monitorar desastres em mais de mil municípios. Enchentes,
deslizamentos de terra, secas severas, incêndios florestais não devem dar
trégua num planeta a cada ano mais quente, como organizações meteorológicas têm
constatado. Por isso é preciso se planejar. Quanto mais bem informadas e
preparadas estiveram as cidades, mais vidas poderão ser preservadas.
Ligação de policiais com o crime precisa ser
coibida por governadores
O Globo
Em São Paulo, PM da ativa foi preso sob
acusação de ser um dos assassinos de delator do PCC
Em novembro, o país se surpreendeu com o
assassinato do empresário Vinícius Gritzbach próximo à área de desembarque do
Aeroporto Internacional de São Paulo, em
Guarulhos, o mais movimentado do Brasil. Executado à luz do dia com dez tiros
de fuzil, Gritzbach tinha feito delação premiada em que revelava informações
estratégicas da atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC) — ele era acusado
de lavar dinheiro para a facção —, além de conexões de policiais paulistas com
o crime organizado.
Na quinta-feira, o sentimento de perplexidade
só aumentou. Uma operação da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo
prendeu um PM da ativa suspeito de ser um dos executores de Gritzbach. Ao todo,
foram presos 16 PMs — o atirador (que não era investigado por elo com o PCC) e
15 agentes. Desde abril do ano passado, a Corregedoria vinha investigando
denúncias de que informações sigilosas eram vendidas a integrantes da facção e
que PMs da ativa e da reserva davam proteção a bandidos que deveriam combater.
A prisão dos PMs — e consequentemente os
estragos na imagem da corporação — ensejou declarações duras, como era de
esperar. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que “ninguém vai
tolerar malfeito, desvio de conduta, desvio de caráter, bico para bandido”.
Afirmou ainda que quem trilhar esse caminho “será preso, expulso e levado ao
Judiciário”.
A Polícia Civil não sai menos chamuscada do
episódio. Em dezembro, uma operação da Polícia Federal (PF) e do Ministério
Público de São Paulo prendeu um delegado e três investigadores suspeitos de
lavar dinheiro e vender proteção ao PCC. Eles eram citados na delação premiada
de Gritzbach.
Por mais que choquem e causem indignação à
sociedade, casos assim não são incomuns no país. Em março do ano passado, 16
PMs e um policial penal do Rio foram presos durante uma operação do Ministério
Público e da Corregedoria da Polícia Militar sob acusação de fazer a segurança
do bicheiro Rogério de Andrade. A promiscuidade de policiais com contraventores
vem de longa data. Em 1994, o estouro de uma “fortaleza” do bicheiro Castor de
Andrade no Rio expôs uma lista com nomes de autoridades que recebiam propina do
“capo”. Castor estranhou não ter sido avisado antes: “Que polícia é essa?”,
indagou incrédulo.
É claro que não se pode confundir o comportamento de alguns policiais bandidos com o conjunto das corporações, em que agentes diariamente arriscam a vida — e muitos morrem — para proteger os cidadãos. É certo que as corregedorias têm investigado um número maior de casos. Mas é obrigação dos governadores fazer mais para manter a força policial imune ao crime. O problema é nacional, e a reação de São Paulo está sendo observada pelos demais estados. Combater a violência se torna mais desafiador quando o inimigo está dentro dos quartéis, armado e pago pelo próprio Estado. Um PM que vaza uma operação não só contribui para o insucesso da ação, mas põe em risco a vida de seus pares.
Surra no Pix expõe deficiência grave da
gestão Lula
Folha de S. Paulo
Gastança, sanha arrecadatória e desconexão do
governo e do PT com o mundo do trabalho elevam desconfiança da população
Um governo que abriu a tampa do gasto público
antes mesmo de tomar posse, abraçou toda e qualquer medida para aumentar a
arrecadação, relaxou metas fiscais em vez de cortar despesas e desprezou
reiterados alertas sobre a explosão da sua dívida terá obviamente baixa
credibilidade diante de largos contingentes da população quando promete fazer o
contrário do que tem feito.
Tampouco se verá livre de grande desconfiança
um partido cujos quadros se desconectaram há muito tempo da realidade da
volumosa fatia dos trabalhadores que batalha pelo pão amiúde na informalidade,
deseja empreender e tem ojeriza a intromissões da burocracia nos seus afazeres.
Não há, portanto, grande surpresa na surra
que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) levou na
opinião pública por ocasião da tentativa
de ampliar os mecanismos de comunicação obrigatória à Receita
Federal de movimentações feitas por Pix.
Decerto ondas de notícias falsas, dando conta
por exemplo de que o governo passaria a tributar as transações na plataforma de
pagamentos, circularam pelas redes sociais. Mas notícias falsas ocorrem em
praticamente todos os assuntos nos dias de hoje, à direita, ao centro e à
esquerda.
A explicação difícil, que deveria ser
compreendida pelo governismo, é sobre por que desta vez a repercussão foi tão
avassaladora a ponto de obrigar
ministros e presidente atônitos a revogar a medida. É que não havia
apenas demagogia oposicionista nem falsificações nessa enorme reação.
O governo afirmava, corretamente, que não
haveria taxação do Pix, mas omitia estrategicamente que o objetivo no final das
contas seria aumentar a fiscalização e, portanto, a arrecadação.
Foi esse o flanco explorado pela oposição. A
mensagem de que o feirante, o motorista, a vendedora ambulante e a cabeleireira
estariam mais expostos às garras do Leão, longe de ser falsa ou inverossímil,
espalhou-se depressa e amalgamou antipatia maciça contra a intenção do governo.
Em nada ajudou a resposta inicial do
oficialismo, de dizer que só criminosos estariam interessados na anulação da
medida.
Mais preocupantes foram as iniciativas do
governo de acionar a Polícia
Federal e a Advocacia-Geral da União no caso. Daí até que se comece a
criminalizar o exercício da oposição e a liberdade de crítica dos cidadãos vai
uma distância pequena.
Não será pela tentativa de controlar o que o
outro lado diz que a administração petista conseguirá equilibrar esse jogo. Uma
corrida desesperada para distribuir benesses também só tenderá a agravar o
problema de base —a gastança— sem melhorar o apreço pelo Executivo federal.
Não há atalhos que não sejam custosos
econômica e politicamente. Aderir sem rodeios ao
cânone da responsabilidade orçamentária e controlar despesas é o
melhor que o governo Lula tem a fazer se quiser evitar dissabores na eleição do
ano que vem.
Política não pode ameaçar o direito ao aborto
legal
Folha de S. Paulo
É vexatória a atuação do governo Lula contra
resolução para ampliar acesso a procedimento por meninas vítimas de estupro
Como indicam estatísticas e diversos casos
recentes, há obstáculos ao acesso ao aborto legal
no Brasil, principalmente para menores de idade.
Sabendo-se que esse grave problema de saúde
pública atinge sobretudo a população mais pobre e que ele deve ser enfrentando
com base em evidências, causa espécie que o governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) tenha atuado
para barrar uma resolução do Conselho Nacional da Criança e
do Adolescente (Conanda) que estabelece diretrizes para o procedimento nessa
faixa etária.
O órgão, que integra o Ministério dos Direitos
Humanos (MDH), aprovou a norma em 23 de dezembro com placar apertado:
15 votos a favor, de representantes da sociedade civil, e 13 contrários, de
representantes da Esplanada.
Segundo apuração da Folha, a orientação
para que os conselheiros ligados ao Planalto vetassem o documento veio
da Casa
Civil.
O texto fora debatido desde junho, com ampla
participação de da gestão petista; um pedido de vista da secretária nacional de
defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente foi aceito.
O governo tentou até uma manobra regimental
de última hora, com um pedido de vista feito pelo conselheiro da Casa Civil no
dia da votação, que foi recusado.
Num movimento incomum, a senadora
bolsonarista Damares Alves (Republicanos-DF)
usou a negação do pedido de vista para ingressar com ação na Justiça contra a
resolução, que foi suspensa, mas enfim liberada no dia 6 de janeiro e publicada
no dia 8.
Lula enfrenta desafios de governabilidade com
forte oposição no Congresso, notadamente da ala conservadora.
Mas isso não justifica que o direito ao
aborto garantido a meninas violentadas —segundo o Código Penal, sexo com menor
de 14 anos é estupro de
vulnerável, e mulheres que sofrem esse tipo de agressão têm autorização para
interromper a gravidez— seja tratado com desmazelo em prol de interesses
políticos.
Os gargalos são evidentes. Em 2021, das 1.556
internações relacionadas a abortos na faixa de 10 a 14 anos, só 131 (8%)
ocorreram por causas autorizadas, como estupro; os 290 estabelecimentos que
realizavam aborto legal estavam em 3,6% dos municípios.
A
taxa de partos no estrato de 10 a 14 anos no Norte do país (4,72 por
1.000 mulheres) em 2023 foi superior à da África subsaariana
(4,4), a pior do mundo.
O governo precisa fazer valer a lei, zelar
pela saúde reprodutiva e, no limite, pela vida das meninas brasileiras. Nem
moralismos nem a política podem se sobrepor a esse dever
civilizatório.
Lula manda caçar bruxas
O Estado de S. Paulo
Ao instrumentalizar a AGU para criminalizar o
discurso da oposição, a título de combater ‘fake news’, Lula prova que o seu
compromisso com a democracia nunca foi sério
O presidente Lula da Silva está atordoado
após o vexame que foi sua reação amadora ao já famoso vídeo no qual o deputado
oposicionista Nikolas Ferreira (PL-MG) levanta suspeitas de que uma instrução
normativa da Receita que previa o monitoramento de operações via Pix seria o
primeiro passo para cobrar mais impostos. Incapaz de fazer vingar sua versão
dos fatos, Lula mandou criminalizar o discurso da oposição, numa clara
demonstração de que seu compromisso de defender a democracia – com o qual se
elegeu presidente na disputa contra Jair Bolsonaro – nunca foi realmente sério.
Já era previsível a mobilização de partidos e
entidades esquerdistas para acionar a Justiça contra os opositores que estão
fazendo o governo de gato e sapato nas redes sociais, mas, na prática, o efeito
disso é limitado e provavelmente ficará apenas no terreno do ridículo. Por
outro lado, a contraofensiva oficial determinada por um presidente da República
humilhado mostra que Lula está disposto a usar a força colossal do Estado
contra cidadãos que ousam criticá-lo ou levantar dúvidas sobre suas reais intenções,
algo que é intrínseco à política. É evidente que isso contraria os fundamentos
da democracia e do Estado de Direito.
O deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) e o
grupo de advogados Prerrogativas anunciaram representações ao Conselho de Ética
da Câmara e à Procuradoria-Geral da República contra o deputado Nikolas
Ferreira, acusando-o, entre outras coisas, de “estelionato” e “crime contra a
economia popular”. Qualquer um de boa-fé que tenha assistido ao vídeo do
parlamentar sabe que ali não houve nada disso. E ainda que houvesse, mentir na
política não é crime, assim como é lícito em uma democracia desqualificar
medidas governamentais, ao contrário do que alguns querem fazer parecer. Mas
aqui ao menos estamos apenas no terreno do pitoresco.
Tudo fica mais sério quando, por ordem direta
do Palácio do Planalto, a Advocacia-Geral da União (AGU) aciona a Polícia
Federal (PF) para que seja aberto um inquérito policial a fim de investigar a
disseminação de “fake news” sobre o Pix, notadamente sobre a suposta taxação do
serviço. A tática é manjada: o governo Lula estigmatiza como “fake news” tudo o
que lhe desagrada como forma de cerceamento do livre exercício da crítica. Não
custa reiterar: espalhar mentiras ou, vá lá, “desinformação” não é crime, salvo
em raras exceções tipificadas no Código Penal – apologia ou incitação ao crime,
manifestações racistas, crimes contra a honra, contra a saúde pública e fraudes
processuais, entre outras. Nada disso se aplica a este caso.
Portanto, não há qualquer justificativa
republicana, quiçá jurídica, para a intervenção de um órgão de Estado como a
AGU em socorro de um governo zonzo em meio a uma batalha eminentemente
política. Donde se pode concluir que a ordem de Lula para que a AGU envolva a
PF no caso do Pix não se presta a outra coisa senão a intimidar opositores,
que, a depender do desdobramento do caso, pensarão dez vezes antes de criticar
publicamente uma medida do governo.
A ameaça de Lula não poderia ser mais clara:
se até um parlamentar como Nikolas Ferreira, o deputado mais votado nas
eleições de 2022, pode ser acionado na Justiça pelo que fala contra o governo,
malgrado estar amparado pela imunidade parlamentar assegurada pela
Constituição, o que pode acontecer com um cidadão que não tem as mesmas
prerrogativas?
Na petição à PF, a AGU argumenta que “os
resultados negativos da ampla disseminação de desinformações sobre o Pix já
estão sendo sentidos com a maior queda de número de transações desde a
implementação do sistema, após desinformação sobre sua taxação, conforme dados
do Banco Central”. E daí? Se o número de movimentações financeiras via Pix
caiu, isso se deve não à eventual prática de crimes, mas à inépcia de um
governo em descrédito.
Se Lula é incapaz de defender no campo da
comunicação uma medida correta de seu governo, não será acossando adversários
na Justiça que vai resgatar a confiança dos brasileiros.
A metástase do PCC no Estado
O Estado de S. Paulo
Prisão de policial acusado de matar delator
do PCC expõe infiltração da facção na PM e mostra que o crime organizado ameaça
contaminar cada vez mais partes do corpo estatal em SP
Uma operação da Corregedoria da Polícia
Militar (PM) de São Paulo levou à cadeia nada menos do que 15 homens da tropa e
expôs a perigosa infiltração do Primeiro Comando da Capital (PCC) na
corporação. Entre os presos está o cabo Dênis Antônio Martins, apontado nas
investigações como um dos autores do assassinato de Antônio Vinícius Lopes
Gritzbach, delator do PCC, em novembro passado na área de desembarque do
Aeroporto de Guarulhos, à luz do dia. A suspeita é de que o cabo tenha agido a
mando do PCC, num caso que mostra a extensão da contaminação do crime
organizado na estrutura estatal paulista – seja nos transportes, na política e,
agora, na polícia.
As investigações do elo da PM com o PCC,
porém, começaram bem antes da morte de Gritzbach. Em março de 2024, uma
denúncia anônima indicou a existência de conluio entre policiais militares e
membros do PCC, com vazamento de informações de investigações para ajudar o
grupo a despistar as autoridades e a evitar prejuízos financeiros.
Esses capangas do crime organizado atuavam em
diversos batalhões e também nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a
temida tropa de elite da corporação paulista. Dois dos envolvidos nesse esquema
ainda integravam a escolta informal e ilegal de Gritzbach, que incluia
tenentes. A Corregedoria chegou a Martins durante o andamento do inquérito
militar aberto para investigar a ligação dos PMs com o PCC.
O crime de homicídio segue em apuração no
Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), ainda à espera de total
resolução. A missão da Polícia Civil agora é identificar o segundo atirador,
investigar a possível relação de um outro PM com o crime e apontar quem seria o
mandante – ou mandantes, haja vista que, como disse a diretora do DHPP, Ivalda
Aleixo, pode ter havido a formação de “um consórcio”.
Apesar de tantas perguntas sem respostas, a
Corregedoria da PM empreendeu um ágil trabalho de depuração da tropa nos
últimos dois meses. Mas, nesse mesmo período, vale lembrar, casos de excessos
envolvendo agentes, além da crescente letalidade policial, constrangeram a
corporação e o atual governo.
E, diante do evidente êxito da Corregedoria,
o governador Tarcísio de Freitas comemorou as prisões. De acordo com ele, em
uma publicação em redes sociais, “as polícias de São Paulo têm compromisso
inegociável com a ética e legalidade” e, por isso, “desvios de conduta serão
severamente punidos e submetidos ao rigor da lei”.
Guilherme Derrite, ex-integrante da Rota e
atual secretário da Segurança Pública, chegou a suspender as férias para
anunciar o resultado da operação, decerto para ganhar os louros e atenuar seu
desempenho controverso como gestor linha-dura. À frente da pasta, ele acumula
manchas na reputação da PM.
Todos os “desvios de conduta” revelados até
aqui têm se mostrado crimes gravíssimos. Logo, faz bem Tarcísio em se
posicionar de forma firme – apesar de manter Derrite no cargo – contra atos
praticados por maus policiais, que, vale ressaltar, certamente não são a
maioria da tropa.
Apesar do sucesso das recentes descobertas, a
audácia do PCC impõe enormes desafios às autoridades. Isso porque, há tempos,
esse bando tenta infestar o poder público. Investigações já apontaram a
cooptação de contratos na área de transportes, para lavar dinheiro do tráfico
de drogas, e a tentativa de lançar candidaturas próprias em eleições para
influir na política.
Como afirmou ao Estadão Rafael
Alcadipani, professor da Fundação Getulio Vargas e membro do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, a descoberta do elo de PMs com o PCC se mostra
“extremamente preocupante”, por ser “mais um sinal de que a sociedade não
acordou para o grau de infiltração do crime organizado”.
Falta, portanto, a tomada de consciência dos
riscos dessa infiltração do PCC nas estruturas estatais, e isso tanto por parte
da sociedade como das autoridades, que hoje estão sentadas sobre um barril de
pólvora. Há quase um quarto de século, na gestão de Geraldo Alckmin, o governo
paulista chegou a cantar vitória sobre o PCC. Desde então, coleciona derrotas,
enquanto o PCC cresceu, multiplicou-se e hoje é um empreendimento
internacional, capaz de cooptar qualquer parte do Estado.
Uma nova era para a China
O Estado de S. Paulo
Com feitos notáveis em 2024, economia chinesa
enfrentará agora suas próprias deficiências – e Donald Trump
A China encerrou 2024 com dois feitos
notáveis. O primeiro: o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu no ano
passado os 5% que o governo tinha como meta, ligeiramente abaixo dos 5,2% de
2023. Trata-se de crescimento invejável para a maioria dos países, mas muito
aquém daquele que o gigante asiático já produziu em um passado não tão
distante.
Reproduzir tal façanha nos próximos anos,
contudo, parece cada vez mais improvável. Oficialmente, o governo chinês ainda
persegue crescimento de 5% no futuro próximo, mas tal desempenho exigirá bem
mais que os estímulos dados por Pequim e que garantiram o cumprimento da meta
de crescimento em 2024.
Desafios como a queda dos preços das casas no
obscuro mercado imobiliário chinês, desemprego acima de dois dígitos entre os
mais jovens e consumo interno fraco são problemas estruturais com os quais
Pequim vem tentando lidar com o gradualismo que lhe é característico.
Outro ponto de atenção é o encolhimento
populacional, mesmo para um país com mais de 1 bilhão de habitantes. A China
registrou declínio de população nos últimos três anos, indicativo de que os
chineses, que contam com aparato muito reduzido de proteção social, têm optado
por não ter filhos, ou seja, cai o número de trabalhadores e consumidores tão
necessários a uma economia que precisará fortalecer cada vez mais a demanda
interna.
Isto porque o segundo feito notável
conquistado pela China no ano passado, o superávit comercial de quase US$ 1
trilhão (mais de R$ 6 trilhões), não apenas não deve se repetir, como
certamente será utilizado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump,
como mais um argumento para limitar as importações norte-americanas de produtos
chineses.
Ainda que a retórica inflamada e o caráter
imprevisível de Trump sejam inegavelmente um risco para a economia global, o
modelo econômico chinês, de exportações volumosas sustentadas em parte por
deflação interna, também o é, e não apenas para os Estados Unidos, mas também
para emergentes como o Brasil, inundados por manufaturados chineses.
De acordo com a ONU, a produção manufatureira
da China é superior ao que Estados Unidos, Japão, Alemanha, Coreia do Sul e
Reino Unido produzem juntos.
Cerca de um terço do histórico superávit
comercial chinês de 2024 deveu-se à exportação de bens para os Estados Unidos.
Já o Brasil, que tem na China seu principal parceiro comercial, tem relação
superavitária com os chineses, mas exporta sobretudo commodities, enquanto
importa produtos de maior valor agregado.
A China sabe que precisa calibrar sua
política econômica porque o modelo atual, em grande parte bem-sucedido até
aqui, pode enfraquecer ainda mais seu mercado doméstico. Os Estados Unidos
sabem que precisam diminuir seu déficit comercial gigantesco, pois ele elimina
empregos bem remunerados para os norte-americanos, entre outros problemas.
Uma nova era se anuncia para a China. Ao
Brasil, que sabiamente resistiu a aderir à Nova Rota da Seda e vem aumentando
tarifas de importação sobre veículos elétricos chineses, será necessário ainda
mais racionalidade. Do contrário, o País sairá chamuscado na guerra entre as
duas potências econômicas globais.
Trump e o Brasil: normalidade pragmática ou
ruídos ideológicos?
Correio Braziliense
Apesar de arroubos retóricos, em condições normais as relações entre Brasil e EUA se baseiam no pragmatismo conduzido pelo discreto balé da diplomacia
Antes mesmo de ocupar a mesa de fundo do
Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump fez ecoar que não pretende manter uma
convivência sem arestas com o restante do mundo. Mandou recados para a
Dinamarca sobre a Groenlândia, em relação à segurança do território
norte-americano; ao Canadá e ao México, no que diz respeito às bases nas quais
o USMCA (bloco econômico formado por Estados Unidos, México e Canadá) está
assentado — ao vizinho de cima, falou sobre possível integração aos Estados
Unidos, e, ao de baixo, um rearranjo que incluiria renomear o golfo que alcança
as costas texana e da Louisiana; aos países da América Central, para que não
"exportem" imigrantes ilegais, pois serão todos mandados de volta à
força; e à China e ao Brasil, que repensem taxações que incidem sobre produtos
que compõem a pauta comercial — e nisso está embutido o incômodo com o avanço
do Brics.
O primeiro sinal de como serão
conduzidas as relações entre Brasil e Estados Unidos será o novo embaixador a
desembarcar em Brasília. Em passado recente, o então representante diplomático
norte-americano, Todd Chapman, fez questão de evidenciar alinhamento, ao
promover um churrasco comemorativo ao 4 de Julho e receber um grupo de
políticos brasileiros em plena pandemia de covid-19.
O recado ao Palácio do Planalto virá daí. A
deduzir pela formação do primeiro escalão do governo Trump, será alguém
diretamente conectado a ele, que terá uma função bem específica: acompanhar de
perto a desenvoltura com que o presidente Lula busca se impor como liderança
para além do campo regional.
Sob o escrutínio norte-americano, dois
eventos incômodos para Washington e que colocam o Brasil na liderança. O
primeiro, a cúpula do Brics no Rio de Janeiro, possivelmente em julho, que
debaterá, além das mudanças climáticas, a utilização da inteligência
artificial, assunto que mexe com o humor das big techs, já devidamente
abrigadas no governo Trump. A presidência brasileira do bloco — que, além de
China e Rússia, tem como integrantes Irã, Emirados Árabes, Arábia Saudita e
Indonésia, todos islâmicos e potências energéticas — é um desconforto que se
estende, inclusive, ao acordo Mercosul-União Europeia, cuja implementação pode
ser acelerada em função da mudança de ventos nos EUA.
O segundo assunto que é um aborrecimento para
Trump é a COP 30, em Belém, em novembro, no qual o Brasil, mais uma vez,
ocupará posição central. Trata-se de um evento para o qual o futuro governo
norte-americano torce o nariz. Tanto que, à frente da Agência de Proteção
Ambiental (EPA, sigla em inglês), estará o ex-deputado Lee Zeldin. Trumpista de
primeira hora e inexperiente na área, assume com o propósito de promover o
enfraquecimento das leis ambientais norte-americanas, segundo a jornalista
Coral Davenport, do The New York Times.
Apesar de arroubos retóricos, em condições normais as relações entre as nações se baseiam no pragmatismo conduzido pelo discreto balé da diplomacia. Mas, a partir de amanhã, essa regra pode se alterar no caminho entre Brasília e Washington — e a ruidosa (e ruinosa) ideologia assumir o protagonismo.
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