domingo, 19 de janeiro de 2025

Dorrit Harazim - O fim de um mundo

O Globo

A chacoalhada geral que se inicia amanhã encontra terreno fértil neste que já foi batizado de ‘século antissocial’

'Estou morrendo. O que peço é que me deixem em paz. Meu ciclo já terminou’, pediu em entrevista ao jornal Búsqueda José “Pepe” Mujica nos primeiros dias de 2025. Dono de uma trajetória que só não comove quem desconhece o significado de pertencer à espécie humana, o uruguaio Mujica sabe estar doente e cansado. Pediu repouso tendo chegado aos 89 anos como fortaleza moral e cívica de um mundo em extinção. E iniciou o merecido retiro poucos dias depois que outra figura de coerência rara — o ex-presidente americano Jimmy Carter — morrera aos 100 anos para só então receber o reconhecimento culposo que lhe fora negado na Casa Branca.

É com esse pano de fundo que assistiremos, amanhã, à volta ao poder de Donald Trump como 47º presidente dos Estados Unidos. Oportuno momento para relembrar um histórico comentário de 111 anos atrás, feito por Sir Edward Grey, à época chanceler do então ainda portentoso Império Britânico. Encostado à janela do palacete que abrigava seu gabinete, profetizou:

— As luzes estão se apagando por toda a Europa. Não voltaremos a vê-las acesas em nosso tempo.

Poucas horas depois, duas divisões do Exército alemão esmagavam a fronteira da Bélgica, dando início à Grande Guerra de 1914-1918, que engoliu cerca de 21,5 milhões de vidas (entre civis e militares). Grey sempre argumentara que a neutralidade não era uma opção viável diante do expansionismo alemão.

Não que o mundo vá acabar a partir de amanhã nas mãos de um triunfal Donald Trump. Mas a posse em Washington pode muito bem servir de data oficial para o fim de “um” mundo — aquele no qual vivíamos, frequentemente às turras, desde o final da Segunda Guerra. Ao complexo militar-industrial de ontem vem se juntar agora o domínio sem fronteiras do complexo tecnoindustrial, cujos plenos poderes ainda estão longe de serem mapeados. E ainda menos, cerceados. Eles lidam com a manipulação e o controle da verdade, este bem cada vez mais fugidio no nosso cotidiano.

Em sociedades decadentes, nas quais a população abre mão de exercer poder político, poder social, interesse cívico ou econômico (outro que o consumismo), a figura do líder de soluções simples parece redentora. Trump prometeu um retorno a uma mítica idade dourada da História americana, que, na realidade, jamais existiu, mas que habita o imaginário de dependentes de redes sociais. Também recebeu consentimento de seus eleitores para descartar grupos destoantes e indivíduos incômodos. Para muitos, inclusive democratas, parte das fulminantes mudanças anunciadas haverá de parecer necessária para desemperrar a ineficiência da máquina do Estado, enquanto a corrosão aos fundamentos do Estado Democrático de Direito permanecerá invisível por largo tempo.

A chacoalhada geral que se inicia amanhã encontra terreno fértil neste que já foi batizado de “século antissocial”. O termo — cunhado por Derek Thompson em ensaio na revista The Atlantic — aponta a dissolução da vida comunal pela tecnologia como o fator de maior mudança na sociedade americana no século XXI — uma solidão autoimposta, não a obrigatória dos tempos da Covid-19. Thompson retrata de vários ângulos quanto o cotidiano coletivo foi sendo substituído por “vivências delivery”. Em muitas lanchonetes e restaurantes do país, perdeu-se o contato humano, substituído pela impessoal retirada de pedidos feitos on-line. A socialização vem declinando em níveis que evocam as telas de Edward Hopper. Entre jovens de menos de 25 anos, o declínio de convívio interpessoal fora das redes sociais cresceu em 35%.

Ao contrário das outras espécies, ensina Pepe Mujica, a vida humana, pelo seu próprio desenvolvimento intelectual, permite que tenhamos a consciência de fazer escolhas, de dar um sentido ao viver.

— Sem objetivo, ou uma causa, a sociedade de mercado vai te enquadrar e vais passar o resto da vida pagando contas, pois és essencial para a mecânica do mercado — explicou em entrevista à BBC no ano passado. — Acabas confundindo o ser com o ter.

É nesse terreno fértil a experimentações que Donald Trump assume o poder. O mundo não merecia tamanho retrocesso civilizatório — a era de desagregação social em que vivemos já deveria ser castigo suficiente.

 

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