Folha de S. Paulo
Com apoio da elite e se não criar revolta
popular, governo pode criar ordem mundial sinistra
O show de Donald Trump recomeça.
Mais importante do que ver os truques é saber se o show e suas consequências
terão o apoio ou a tolerância de partes relevantes do establishment americano;
se não vão diminuir o prestígio popular de Trump.
Caso tenham apoio suficiente, se pergunta 1)
Trump fará uma "Presidência transformadora"? 2) ou será versão
circense e anárquica das correntes mais profundas, de mudanças paulatinas, que
persistem tanto sob democratas quanto republicanos?
A presidência de Franklin Roosevelt, de 1933 a 1945, foi transformadora, no juízo dos americanos. Inventou a intervenção ampla do governo na economia, direitos sociais e a administração imperial (americana) da economia e da política mundiais. A de Ronald Reagan (1981-1988) também. No que Trump poderia ser transformador?
Há pistas nos discursos lunáticos, embora
seja temeridade até especular o que vai ser de Trump 2, dada a sua relação
incerta ou hostil com parte extensa do establishment (política, finança, grande
empresa, alta burocracia, universidade e centros de pesquisa, mídia etc.). Além
do mais, Trump é adepto da barganha negocista, dado a alianças e comportamentos
facinorosos, uma personagem entre o herói trapaceiro (o "trickster"
da etnologia) e um "duce" (sim, Mussolini).
Trump pode ignorar o que se chama de
"ordem internacional baseada em regras", mesmo que algumas delas para
inglês ver (mas certa hipocrisia é importante). Ao aumentar impostos de
importação ou criar mais restrições ao livre comércio e ao fluxo de capitais,
acabaria com os planos americanos de liberalização econômica mundial, que
duraram de 1943 à primeira década deste século. Além do mais, relações
econômicas estariam explicitamente ameaçadas pelo uso da força, inclusive
contra aliados.
Trump aceita ou admira ações imperiais ou
agressões. Vide sua atitude em relação à guerra de Vladimir
Putin contra a Ucrânia. Quem sabe tolere ações da China no
quintal dela. Não quer que os EUA financiem a defesa da Europa, que,
aliás, viveria crise ainda pior se tivesse de aumentar o gasto militar. Trump
seria, então, adepto de uma espécie de isolacionismo. Assim eram os americanos
antes de 1941 e ainda mais antes de 1914. Sim, mandavam no quintal das
Américas, no porrete, sem a política de "boa vizinhança" posterior.
Conter o poder econômico, tecnológico e
militar da China é uma política americana, ponto. Vide Joe Biden,
que levou adiante ou ampliou medidas na linha de Trump 1. A dúvida é saber se
políticas industriais e intervenção estatal "estratégica" na economia
vão continuar, sob Trump (talvez em forma mais profunda de capitalismo de
compadres, vide a alegria de Elon Musk).
Os EUA estão no caminho de alguma desordem
fiscal (déficits e dívida enormes). Não há sinais de que Trump tenha planos de
conter o problema (ao contrário, quer cortar impostos). Se nada fizer, terá
inflação e juros mais altos. Diz que vai conter gasto desmontando o Estado.
Seria uma paulada, de efeito social enorme.
Fora na epidemia, os déficits não são tão
ruins desde os anos seguintes ao do colapso de 2008, situação minorada em parte
porque o Banco Central aliviou a conta de juros —financiou o governo, na
prática. Mas a dívida agora é bem maior (52% do PIB em 2009, 98% em 2024).
Se Trump ficar só no circo, será um alívio
para o mundo.
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