segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A Groenlândia na mira do Império – Demétrio Magnoli

O Globo

‘Não me comprometo com isso’, replicou Trump ao ser indagado se excluiria o uso da força para anexar a Groenlândia e o Canal do Panamá:

— Pode ser que tenhamos de fazer algo. O canal é vital para nosso país e precisamos da Groenlândia por razões de segurança nacional.

A declaração insere-se na “arte da negociação” do presidente que retorna, baseada em intimidações preliminares destinadas a extrair concessões. Mas é ameaça de uso da força para alterar fronteiras: um bombardeio retórico da fortaleza de regras que protege a ordem internacional do Pós-Guerra. Serve a Xi Jinping e Putin, que podem alegar o mesmo sobre Taiwan e a Ucrânia. A Dinamarca pertence à Otan. Uma invasão de seu território pela potência que lidera a aliança significaria o fim da Otan.

Os marines não desembarcarão na costa gelada da ilha ou no porto tropical de Balboa. Mas, no caso do território dinamarquês, a ideia da aquisição tem alguma chance de prosperar: a Groenlândia flerta com um projeto insustentável de independência.

A Lei de Autogoverno firmada pela Dinamarca e pela Groenlândia em 2009 confere ao território a autodeterminação, com opção pela independência condicionada a um referendo na ilha e à aprovação do Parlamento dinamarquês. O governo autônomo ensaia um referendo para 2025, o que esclarece o timing da proposta especulativa de Trump.

Há imensos obstáculos financeiros e geopolíticos no caminho da independência. A Dinamarca financia dois terços do orçamento da ilha. A posição estratégica do território e suas riquezas naturais concentram as atenções dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Os 57 mil groenlandeses, empregados no setor público ou em atividades pesqueiras, carecem de meios para proteger uma hipotética soberania.

A curva de menor distância entre Estados Unidos e Eurásia passa pelo Oceano Ártico. No cenário distópico de uma confrontação nuclear, mísseis intercontinentais dos Estados Unidos e da Rússia cortariam os céus do Grande Norte. Por isso, a região está pontilhada por instalações militares russas, dos Estados Unidos e dos países nórdicos da Otan. No noroeste da Groenlândia situa-se a base americana de Pituffik, que abriga radares e sensores de detecção de mísseis integrados ao Comando de Defesa Aeroespacial (Norad, na sigla em inglês).

As mudanças climáticas reduzem gradualmente a extensão da calota gelada boreal. Nos meses de verão, configuram-se duas ligações polares entre o Atlântico e o Pacífico abertas à navegação comercial e militar: a Passagem de Noroeste, ao longo do Canadá, e a Rota Boreal, menos obstruída por gelo, ao longo da Rússia. Comparadas à rota pelo Canal de Suez, as passagens árticas reduzem significativamente a distância entre os portos chineses e os da Europa setentrional. A Groenlândia situa-se na face atlântica de ambas.

Riquezas minerais inexploradas escondem-se no subsolo da ilha ártica cujas faixas costeiras perdem rapidamente sua capa de gelo. As reservas de zinco, grafite, ouro, cobre, chumbo e terras raras utilizadas em baterias automotivas e turbinas eólicas já impulsionam investimentos concorrentes da China, dos Estados Unidos e da Europa. Sob pressão de Washington, o governo da Groenlândia já começa a limitar empreendimentos chineses.

A ilha ártica foi colônia dinamarquesa até 1953, ano de sua incorporação oficial ao Reino da Dinamarca. O movimento pela independência alega que a incorporação representou um ato colonialista unilateral e ilegal, descortinando uma teia argumentativa favorável à meta de Trump.

Em 1803, Thomas Jefferson adquiriu a Louisiana Francesa, que se estendia por toda a Bacia do Mississippi, dobrando o território dos Estados Unidos por US$ 15 milhões. Andrew Johnson, o cinzento sucessor de Lincoln, um protetor da elite sulista, comprou o Alasca do czar Alexandre II em 1867, aproveitando-se da catastrófica derrota russa na Guerra da Crimeia. Do ponto de vista de Trump, a aquisição da Groenlândia inscreve-se na tradição americana.

Trump habita, mentalmente, o mundo dos impérios, mas vive de fato no mundo criado pela descolonização. A ironia é que, para realizar um objetivo imperial, ele tem a oportunidade de brandir argumentos anticoloniais.

 

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