O Globo
‘Não me comprometo com isso’, replicou Trump
ao ser indagado se excluiria o uso da força para anexar a Groenlândia e o Canal
do Panamá:
— Pode ser que tenhamos de fazer algo. O
canal é vital para nosso país e precisamos da Groenlândia por razões de
segurança nacional.
A declaração insere-se na “arte da negociação” do presidente que retorna, baseada em intimidações preliminares destinadas a extrair concessões. Mas é ameaça de uso da força para alterar fronteiras: um bombardeio retórico da fortaleza de regras que protege a ordem internacional do Pós-Guerra. Serve a Xi Jinping e Putin, que podem alegar o mesmo sobre Taiwan e a Ucrânia. A Dinamarca pertence à Otan. Uma invasão de seu território pela potência que lidera a aliança significaria o fim da Otan.
Os marines não desembarcarão na
costa gelada da ilha ou no porto tropical de Balboa. Mas, no caso do território
dinamarquês, a ideia da aquisição tem alguma chance de prosperar: a Groenlândia
flerta com um projeto insustentável de independência.
A Lei de Autogoverno firmada pela Dinamarca e
pela Groenlândia em 2009 confere ao território a autodeterminação, com opção
pela independência condicionada a um referendo na ilha e à aprovação do
Parlamento dinamarquês. O governo autônomo ensaia um referendo para 2025, o que
esclarece o timing da proposta especulativa de Trump.
Há imensos obstáculos financeiros e
geopolíticos no caminho da independência. A Dinamarca financia dois terços do
orçamento da ilha. A posição estratégica do território e suas riquezas naturais
concentram as atenções dos Estados Unidos,
da China e
da Rússia.
Os 57 mil groenlandeses, empregados no setor público ou em atividades
pesqueiras, carecem de meios para proteger uma hipotética soberania.
A curva de menor distância entre Estados
Unidos e Eurásia passa pelo Oceano Ártico. No cenário distópico de uma
confrontação nuclear, mísseis intercontinentais dos Estados Unidos e da Rússia
cortariam os céus do Grande Norte. Por isso, a região está pontilhada por
instalações militares russas, dos Estados Unidos e dos países nórdicos da Otan.
No noroeste da Groenlândia situa-se a base americana de Pituffik, que abriga
radares e sensores de detecção de mísseis integrados ao Comando de Defesa
Aeroespacial (Norad, na sigla em inglês).
As mudanças climáticas reduzem gradualmente a
extensão da calota gelada boreal. Nos meses de verão, configuram-se duas
ligações polares entre o Atlântico e o Pacífico abertas à navegação comercial e
militar: a Passagem de Noroeste, ao longo do Canadá, e a Rota Boreal, menos
obstruída por gelo, ao longo da Rússia. Comparadas à rota pelo Canal de Suez,
as passagens árticas reduzem significativamente a distância entre os portos
chineses e os da Europa setentrional. A Groenlândia situa-se na face atlântica de
ambas.
Riquezas minerais inexploradas escondem-se no
subsolo da ilha ártica cujas faixas costeiras perdem rapidamente sua capa de
gelo. As reservas de zinco, grafite, ouro, cobre, chumbo e terras raras
utilizadas em baterias automotivas e turbinas eólicas já impulsionam
investimentos concorrentes da China, dos Estados Unidos e da Europa. Sob
pressão de Washington, o governo da Groenlândia já começa a limitar
empreendimentos chineses.
A ilha ártica foi colônia dinamarquesa até
1953, ano de sua incorporação oficial ao Reino da Dinamarca. O movimento pela
independência alega que a incorporação representou um ato colonialista
unilateral e ilegal, descortinando uma teia argumentativa favorável à meta de
Trump.
Em 1803, Thomas Jefferson adquiriu a
Louisiana Francesa, que se estendia por toda a Bacia do Mississippi, dobrando o
território dos Estados Unidos por US$ 15 milhões. Andrew Johnson, o cinzento
sucessor de Lincoln, um protetor da elite sulista, comprou o Alasca do czar
Alexandre II em 1867, aproveitando-se da catastrófica derrota russa na Guerra
da Crimeia. Do ponto de vista de Trump, a aquisição da Groenlândia inscreve-se
na tradição americana.
Trump habita, mentalmente, o mundo dos
impérios, mas vive de fato no mundo criado pela descolonização. A ironia é que,
para realizar um objetivo imperial, ele tem a oportunidade de brandir
argumentos anticoloniais.
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