Walter Porto / Folha de S. Paulo
Pesquisadora argumenta que a ascensão de
extremistas criou 'mundo invertido' sinistro nas lacunas do progressismo
Naomi Klein começou
a ser sugada por uma crise de identidade. De início parecia só um incômodo
chato, mas de repente ela se sentia sumindo no meio de um redemoinho, sem saber
onde se segurar. Não se engane, estamos falando mais de política que de
psicanálise.
Uma das intelectuais mais celebradas da
América do Norte, a canadense era às vezes confundida com outra escritora de
sucesso, Naomi
Wolf. Até aí, nada anormal —as duas eram quase contemporâneas, tinham
alguma semelhança física e defendiam ideias de esquerda.
Klein ficou conhecida por críticas sistêmicas
ao neoliberalismo em obras como "Sem Logo" e "A Doutrina do
Choque". Wolf se celebrizou por "O Mito da Beleza", um protesto
contundente contra as imposições sociais ao corpo feminino.
Tudo passou a ficar bem mais estranho quando
Wolf, a "outra Naomi", começou a ser rejeitada pelo campo
progressista ao embasar cada vez menos suas ideias em fatos históricos e
científicos, entrando numa espiral de teorias conspiratórias.
Ao ser cobrada nas redes sociais como se
fosse sua homônima, Klein testemunhou de perto a metamorfose de Wolf em uma
estandarte do negacionismo do clima e da pandemia. Sua contraparte virou
convidada de honra no podcast "The War Room", de Steve
Bannon, o estrategista-mor de Donald Trump.
Às vésperas da posse do republicano para um
segundo mandato, o livro que Klein escreveu sobre sua experiência,
"Doppelgänger", ilumina os métodos pelos quais o trumpismo atraiu
eleitores imitando táticas da esquerda, criando um submundo de "fatos
alternativos", se apresentando como mais tolerante a erros e estendendo
tapete vermelho a ex-progressistas frustrados.
A autora entendeu que seu mergulho no
"mundo invertido" da outra Naomi ensinava algo sobre as mudanças por
que passam tantas democracias hoje, na "parte mais assustadora" de
sua "jornada doppelgänger"
—expressão alemã que define duas pessoas que se parecem muito.
"Não é apenas um indivíduo que pode ter
um duplo sinistro; nações e culturas também os têm." O Estado incorporado
pela extrema
direita, segundo ela, é o "irmão gêmeo ubíquo das democracias liberais
ocidentais", "versões sombrias de nosso eu coletivo".
O livro lançado há pouco no Brasil fala da sensação geral de não saber mais discernir o que é real do que não é —um sentimento difuso de desorientação, de "jet lag coletivo". Foi buscando retomar o esteio que Klein elaborou seu longo ensaio e deu essa entrevista exclusiva à Folha por videoconferência.
Seu livro antecipou falhas do campo
progressista que ficaram mais visíveis após a eleição de Trump. A sra. retrata
a postura de Bannon e outros líderes da direita como mais acolhedoras a novos
eleitores que estavam distantes do seu campo político. Por que a direita foi
eficiente em fazer isso e a esquerda não?
A direita que surgiu das cinzas do
neoliberalismo não tem um projeto econômico transparente. É um discurso muito
incoerente —não em termos do que faz quando chega ao poder, mas do que diz para
chegar lá.
Há muita contradição, por exemplo, entre a
fala sobre enfrentar as elites e a defesa de cortar impostos para as elites. É
um discurso familiar à esquerda na crítica aos grandes poderes corporativos,
mas sua política é neoliberalismo com esteroides. O que Elon Musk
vai fazer no governo é superausteridade —por isso ele tem tanto
interesse em Javier Milei,
da Argentina.
E é precisamente por causa dessa incoerência
que eles conseguem montar uma coalizão a partir das falhas e dos abandonos da
esquerda. Bannon estuda a esquerda bem de perto, fala abertamente que lê Noam Chomsky e
Lênin. Ele presta atenção aos assuntos e às pessoas que a esquerda está
deixando de lado.
Nós, da esquerda, temos um discurso de
inclusão, de diversidade, mas na prática essa cultura é, com frequência,
intolerante e doutrinária. Você sente às vezes que precisa fazer um teste para
entrar na esquerda e depois continuar fazendo testes para ficar lá [risos]. É o
oposto da tenda ampla e acolhedora necessária para uma coalizão vencer.
E não acho que a direita seja tão acolhedora
quanto parece —são bem menos ao falar de deportações em massa e fronteiras
militarizadas. Mas isso não significa que não podem se apresentar como uma
cultura que deixa as pessoas à vontade para cometer erros e discordar.
Diria então que os partidos de esquerda
julgam mais seus eleitores, enquanto a direita não demanda nada deles?
É complicado, primeiro porque o Partido
Democrata não é a esquerda. É um partido comandado por uma elite de
alto nível educacional, muito interconectada —são pessoas aterrorizadas pelo
populismo de esquerda, como de Bernie Sanders [em cuja campanha Klein
trabalhou], porque o status quo funciona bem para elas.
E eu tenho menos interesse no Partido
Democrata que na esquerda, porque esta é a força que pode enfrentar o fascismo.
Ele [o fascismo] surge em momentos de falha sistêmica, quando o centro se
despedaça, então é necessária uma esquerda robusta para diagnosticar essas
falhas pelo seu lado.
Se não houver ninguém nesse campo para
entender que formas de organização e solidariedade podem ser criadas em
contraposição à extrema direita, então a raiva justificada que as pessoas
sentem por não conseguir pagar por comida e aluguel será direcionada a algum
tipo de conspiração.
Por isso digo que a nova direita é uma
"doppelgänger" da esquerda. O fascismo sempre
tem uma estranha similaridade com a esquerda real, é um
pseudo-nacional-socialismo, o que não quer dizer que são a mesma coisa. Não
são.
É por isso que importa se a esquerda for
hipócrita, se trair seus princípios e não conseguir criar uma cultura da qual
uma pessoa normal gostaria de participar.
Como a esquerda pode atrair eleitores de
direita sem ceder demais em sua agenda em temas essenciais, como a crise
climática?
Não devemos pensar nessas pessoas como
eleitores de direita, mas como pessoas que votaram à direita nessa eleição e
podem ter votado na esquerda em outras. Estamos em um momento de muito fluxo,
nada estático.
De uma maneira esquisita, estamos meio
entorpecidos por uma sequência de choques, porque eles têm vindo em
"stacatto". São crises econômicas, climáticas, pandemias, revoltas
políticas. Isso virou nossa realidade, e é perigoso se acostumar com políticas
de abandono em massa da vida humana.
Então a política tem, mesmo, que voltar para
o básico. As perguntas são: nós valorizamos a vida? Acreditamos que todas as
pessoas têm o mesmo valor no mundo?
Há uma crise espiritual, eu diria. Às vezes
penso que o papa [Francisco] é o único que consegue falar nessa língua hoje.
Precisamos de líderes que sejam vozes algo proféticas no meio dessa intersecção
de crises, de mortes tão massificadas, que na academia chamamos de "necropolítica".
Também acho que devemos parar de usar palavras como "necropolítica"
[risos]. Mantenha as coisas simples.
Mas você falou de clima. Políticas para o
clima hoje são associadas, na mente dos eleitores, com a classe média e a elite
intelectual, como preocupações de luxo, que vão deixar sua vida mais cara.
O ecopopulismo conecta o debate sobre o clima
a questões como mobilidade, moradia, alimentação. O movimento pelo clima deve
encontrar os eleitores aí no meio, não forçar uma falsa escolha entre suas
preocupações climáticas e suas necessidades imediatas.
Ao final do livro, a sra. urge as pessoas a
serem menos individualistas e defende que a "destruição do eu" pela
qual passou foi, na verdade, positiva. Isso envolve a redução do tempo nas
redes sociais?
Sim, essa é fácil. Eu sou grata a Elon Musk
por arruinar
o Twitter. As melhores alternativas de mídia social, agora, vão ser as que
engajam menos. Eu entrei no Bluesky, e
não é um ambiente tão dramático e furioso. É até meio tedioso, e tudo bem!
Não é que precisamos aniquilar o ego, mas nós
nos tornamos grandes demais para o nosso próprio bem. Ficamos obcecados com a
otimização da nossa personalidade e da nossa marca particular. Não porque somos
todos narcisistas, mas porque temos medo.
Não estamos vendo qualquer segurança
econômica para além de nós mesmos e viramos nossa única boia de salvação.
Quando nos juntamos em organizações, sejam sindicatos, coalizões políticas ou
grupos de arte, dá uma sensação real de reforço de poder, de possibilidades.
Devemos voltar a pensar nas redes como
ferramentas para levar pessoas a ambientes offline —como um grande quadro de
avisos, não como uma rede de sociabilidade.
Em ‘Doppelgänger’, a sra. divide a sociedade
entre um 'mundo real' e um 'mundo espelho'. Quanto esse conceito de polarização
ajuda a entender a política de hoje e quanto ele mascara as diferenças que
existem dentro desses grupos?
Ou as similaridades entre os dois grupos,
não? Sim, mascara muito. Por isso eu concluo no livro que estamos todos em um
"mundo espelho", cada grupo de um lado do vidro. A ideia de que nós,
pessoas de esquerda virtuosas que se baseiam na ciência, somos a realidade
verdadeira —isso é um tipo de fantasia.
A separação mais importante é entre o mundo
em que todos vivemos e o que chamo de "terra das sombras", aquilo
para o que ninguém suporta olhar. Estamos entendendo melhor o quanto nós nos
amarramos a sistemas de aniquilação e morte, algo que nunca enfrentamos.
Eu me refiro, por exemplo, ao tamanho da
crise climática, ou o que significa investir mais e mais na inteligência
artificial, que cria "doppelgängers" virtuais de todo mundo enquanto
suga toda a energia do mundo material. É incrivelmente distópico e só piorou
desde que escrevi.
São coisas quase impossíveis de encarar,
então nos distraímos freneticamente acusando os outros e purificando a nós
mesmos. E ninguém está acertando as contas consigo mesmo, seja na esquerda ou
na direita.
A crise climática, por exemplo, nem estava nas cédulas de votação em 2024. Não
conseguimos lidar com isso porque significa encarar os limites do que nós
conseguimos fazer como indivíduos. As implicações são esmagadoras, porque o
trabalho que precisa ser feito é profundamente coletivo.
Ao mergulhar no mundo da extrema direita como
uma pesquisadora de esquerda, como a sra. se equilibrou entre a discordância
profunda e a atenção honesta àquele discurso?
Você tem que levar a sério. Estamos num
momento de crise narrativa na esquerda, então é importante entender por que
essas histórias têm tanta ressonância.
Algo em que toquei apenas superficialmente no
livro é o papel das narrativas judaico-cristãs apocalípticas, que apontam para
o fim dos tempos. No Brasil, não dá para entender a ascensão da ultradireita
sem as narrativas religiosas, e elas estão profundamente codificadas no nosso
imaginário coletivo. Somos incrivelmente obtusos, no mundo secular, em entender
o poder dessas narrativas.
Nós achamos que vamos conseguir martelar
fatos na cabeça das pessoas, mas você está indo contra uma cosmologia
transcendente, oposta ao mundo material —com qual história você se contrapõe a
isso? É por isso que o papa me interessa tanto [risos].
Doppelgänger: Uma Viagem Através do
Mundo-Espelho
Preço R$ 99,90 (480 págs.)
Autoria Naomi Klein
Editora Carambaia
NAOMI KLEIN, 54. Canadense nascida em
Montreal, ficou conhecida por livros como "Sem Logo" (2000, Record),
uma crítica à cultura do consumismo massificado, e "A Doutrina do
Choque" (2007, Nova Fronteira), que argumenta que governos e empresas
exploram momentos de comoção para agir contra os interesses da população. Nos
últimos anos, tem se dedicado à pauta do clima, por exemplo na obra "Como
Mudar Tudo" (2021, Rocco). Hoje é codiretora do Centro de Justiça
Climática da Universidade da Colúmbia Britânica, professora da Universidade
Rutgers, nos Estados Unidos, e colunista do jornal britânico The Guardian.
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