Correio Braziliense
Na política, um sistema de
pesos e contrapesos preserva a cooperação institucional. A independência entre
os Poderes parece ter perdido esse equilíbrio silencioso. Falta harmonia.
Não é que o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) não mereça um enredo de escola de samba, pois sua vida romanesca
serve até para a teledramaturgia. Mas a estreia da Acadêmicos de Niterói no
Grupo Especial em 2026, conduzindo pela Sapucaí um enredo que celebra sua
trajetória pessoal, é um caso típico de culto à personalidade, que só não é
comparável ao estilo norte-coreano porque lá a sociedade foi militarizada e,
aqui, é carnaval. Não seria nada mais justo se 2026 não fosse um ano eleitoral.
A avenida transforma líderes em alegorias, memórias em canto coletivo e contradições nacionais em poesia. O processo político não é um desfile na Sapucaí, porém, as escolas de samba nos dão um ensinamento precioso para a política, que nos faz muita falta nesse momento de estresse entre os Poderes. Toda grande escola, para desfilar na avenida, precisa de um diretor de harmonia, alguém capaz de garantir que o conjunto avance sem “atravessar” o samba e abrir grandes espaços na pista.
O enredo sobre Lula — o menino do agreste que
subia no pé de mulungu para enxergar esperança — ilumina a dimensão simbólica
de sua biografia. A escola rememora a seca, o pau de arara, o sindicalismo sob
a ditadura, a viuvez, a ascensão política e o pacto social que moldou sua
liderança. Tudo embalado pela fantasia coletiva que faz do desfile uma
narrativa. Na política real, porém, Lula está acossado por uma conjuntura menos
lírica: tensão aberta com o Senado, ruídos com o Judiciário e um Legislativo em
crescente rebeldia. Falta harmonia.
O diretor de harmonia, figura central no
carnaval, não rege a bateria — isso cabe ao mestre. Ele rege algo mais
complexo: o espírito da escola. Acompanha alas, controla o fluxo, mantém o
canto vivo, evita buracos no desfile e corrige desalinhamentos antes que virem
tragédia. Sua missão é assegurar concordância entre partes diversas e evitar
que pequenos conflitos entre suas alas comprometam a escola inteira.
Na política, um sistema de pesos e
contrapesos preserva a cooperação institucional, porém em harmonia. A
independência entre os Poderes parece ter perdido esse equilíbrio silencioso e
não tem um líder que o restabeleça.
Ao impor barreiras inéditas à abertura de
processos de impeachment contra seus ministros, o Supremo Tribunal Federal age
para se blindar da pressão externa provocada pela radicalização política e pelo
uso abusivo desses pedidos como instrumento de chantagem.
O Senado, por sua vez, reage e dobra a aposta
ao discutir mandatos fixos para ministros, mudanças no quórum para abertura de
processos e uma reforma profunda da Lei do Impeachment. Executivo, Legislativo
e Judiciário, menos de um ano antes das eleições, perdem pontos nos quesitos
equilíbrio, previsibilidade e respeito recíproco. Em vez de desfile, temos uma
marcha para o caos.
As cacofonias
Se de um lado falta harmonia entre os
Poderes, sobra cacofonia no campo da oposição. A prisão preventiva de Jair
Bolsonaro não destruiu sua influência, mas reduziu sua “sombra de futuro”.
Mesmo inelegível e encarcerado, determina movimentos, arbitra candidaturas e
condiciona estratégias. A escolha de Flávio Bolsonaro (RJ) como “candidato do
PL” para 2026, anunciada na própria Superintendência da Polícia Federal, é o típico
“dedazo” latino-americano, no qual o líder indica, sem consulta interna, seu
herdeiro político. O gesto preserva seu espólio eleitoral na figura do seu
primogênito, mas desarticula a direita do país.
Os governadores Ronaldo Caiado (União-GO),
Romeu Zema (Novo-MG), Ratinho Junior (PSD-PR) e Eduardo Leite (PSD-RS) mantêm
suas pré-candidaturas e não aceitam a imposição familiar. Michelle Bolsonaro
(PL), ao apoiar Flávio, tenta manter a unidade simbólica do clã Bolsonaro.
Valdemar Costa Neto, preocupado com a sobrevivência do capital eleitoral do
bolsonarismo, preferiria Michelle, mas já oficializou a candidatura de Flávio,
para conter a evasão de parlamentares para outras legendas.
A prisão de Bolsonaro encurtou o horizonte da
cooperação entre os pré-candidatos. Governadores e parlamentares já se
perguntavam se valia a pena manter a espera pela bênção do líder encarcerado. O
establishment da direita começava a compor seus próprios enredos. O “viver e
deixar viver” que mantinha o equilíbrio entre os oposicionistas acabou.
Tarcísio de Freitas é a grande esfinge desse tabuleiro.
Sua própria “sombra de futuro” ameaçava o
frágil pacto da oposição: se for candidato, pode frustrar o projeto da família
Bolsonaro por uma década; se não for, nada arrisca, mantém-se como governante
forte de São Paulo, mirando 2030. Flávio não tem a obsessão do pai, cumpre uma
tarefa; Tarcísio é mais ambicioso. Somente quando terminar o prazo para
desincompatibilização dos cargos públicos saberemos se a candidatura do
primogênito de Bolsonaro é para valer ou apenas uma cortina de fumaça para
tirar Tarcísio do sereno e transformá-lo em “tertius” da oposição.
Lula enfrenta seu próprio teste de harmonia.
O PT não consegue ou não quer ampliar suas alianças; o governo mantém uma queda
de braços com Alcolumbre e perde capacidade de articulação na Câmara; também vê
o STF tomar decisões que moldam o ambiente institucional; e ainda precisa
administrar uma oposição que, mesmo dividida, carrega ainda o peso simbólico do
bolsonarismo.
Não há, na conjuntura política brasileira,
quem faça o papel do diretor de harmonia. Poderes, partidos, governadores, base
e oposição carnavalizam a política e se movimentam como se fossem o “bloco de
sujos” da elite política do país.

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