domingo, 7 de dezembro de 2025

Sem poesia nem rima, por Dorrit Harazim

O Globo

Trump faz do combate à imigração sua arma política mais potente neste segundo mandado. Demoniza o ‘outro’

A história talvez seja apócrifa, mas é boa. Conta-se que, quando Sam Goldwyn decidiu investir na versão para cinema de “The children’s hour”, primeira obra de dramaturgia da americana Lillian Hellman, ele foi avisado pelos executivos da MGM de que, na peça, as protagonistas eram lésbicas. Temiam, portanto, que os censores da indústria cinematográfica da época impusessem restrições. O chefão de Hollywood, segundo a história, deu de ombros e foi em frente:

— Qual o problema? Façam com que as protagonistas sejam albanesas.

Não sendo americanas, não manchariam a ficção nacional.

Donald Trump tem se alimentado com voracidade desse artifício, produzindo um cruel roteiro de entretenimento pessoal: a criação de inimigos imaginários para consolidar seu poder interno. O histórico de insultos a cidadãos de “países de merda” ou do “Terceiro Mundo”, como gosta de adjetivar, é antigo em Trump e sempre lhe rende manchetes. Também o surto de nativismo cru e asco humano dirigido contra somalis na semana passada, durante uma reunião ministerial na Casa Branca, atingiu o objetivo: obnubilou o restante do noticiário. (Só esqueceram de lhe avisar que Iman, a supermodelo nascida em Mogadíscio e ícone do mundo fashion, fez seu patrimônio líquido de US$ 200 milhões como imigrante nos Estados Unidos.)

Insultos como “[os somalis] são lixo”, “nada fazem além de reclamar”, “chegam aqui saídos do inferno e se queixam o tempo todo”, “eles fedem, não os queremos aqui” foram sendo despejados. O vice J.D. Vance aplaudiu. A secretária de Imprensa da Presidência descreveu a fala presidencial como “momento épico”. Segundo a imprensa americana, foi o único momento de arroubo capaz de manter Trump acordado na reunião. De resto, ele tem aparecido cansado de tanta bajulação e cochila em eventos públicos. Talvez por nunca ter folheado a revista The New Yorker, não deve ter aprendido com o ensaísta E.B. White que “ter e manter inimigos é uma das coisas que mais consomem energia, tempo e vida” de um ser humano.

Trump faz do combate à imigração sua arma política mais potente neste segundo mandado. Demoniza o “outro” indesejado sempre que algum tópico indigesto (caso Epstein, efeito bumerangue das tarifas, perda de popularidade) bate às portas da Casa Branca. E, no caminho, vai destruindo 250 anos de construção de uma sociedade que, mesmo sem conseguir, pretende ser forjada por uma história plural, não por ancestralidade, religião, língua ou raça em comum. As primeiras palavras da Constituição de 1789 são “Nós, o Povo...”.

Mas quem é esse povo? O poema “Nós e eles”, que Rudyard Kipling escreveu em 1917 contra o etnocentrismo imperial britânico, resume o problema na última estrofe: Todas as pessoas de bem concordam,/E todas as pessoas boas dizem:/Todas as pessoas boas, como Nós, são Nós/E todos os outros são Eles!/Mas, se cruzas o mar,/Em vez de atravessar a rua,/Podes acabar (pensa bem!) olhando para Nós/Como um tipo de Eles!

No universo trumpiano, não se busca poesia nem rima. Para Kristi Noem, a estridente secretária de Segurança Interna americana, “é preciso banir totalmente países desgraçados que inundam nossa nação de assassinos, sanguessugas e viciados”. Robert Pape, pesquisador de violência política da Universidade de Chicago, aponta para o caráter desumanizador do linguajar escolhido:

— Não se trata apenas de metáforas vis, elas são particularmente desumanizadoras — disse em entrevista ao New York Times. — Quando você usa a palavra “lixo”, você não se refere a algo humano, e sim a algo descartável.

Na semana passada, o governo Trump suspendeu não apenas a entrada de cidadãos de 19 países, entre os mais pobres e instáveis do mundo. Também interrompeu a concessão de cidadania americana ou emissão de green card a pedidos já aceitos anteriormente. As novas regras podem afetar mais de 1,5 milhão de pessoas com pedidos de asilo pendentes e mais de 50 mil que haviam recebido abrigo durante o governo anterior, do democrata Joe Biden.

Nessa caçada higienizante que tem por meta deportar uma média de 3 mil imigrantes ao dia, agentes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos e da Polícia de Fronteira (Border Patrol), ambos subordinados ao Departamento de Segurança Interna, se atropelam em ações que algum dia envergonharão quem as ordenou, executou, incentivou, aplaudiu ou fingiu que não viu. Até janeiro de 2026, está em curso a contratação, treinamento e posicionamento de 10 mil novos agentes de deportação. Os aprovados recebem um bônus de US$ 50 mil (cerca de R$ 265 mil) e isenção de pagamento de empréstimo estudantil, além de outros mimos. Natal gordo. E infame.

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