domingo, 7 de dezembro de 2025

O Orçamento sequestrado, por Míriam Leitão

O Globo

O Congresso captura parte expressiva do Orçamento, prejudica a governabilidade e distorce o funcionamento da democracia

O presidente Lula disse que o Orçamento foi sequestrado. E foi. O presidente da Câmara, Hugo Motta, disse que as emendas são uma prerrogativa do Congresso. E são. O erro está no valor exorbitante a que as emendas chegaram e no modo como são usadas pelo Legislativo. O montante de R$ 50 bilhões é uma distorção institucional. O fato de a Comissão Mista de Orçamento ter aceitado emendas de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem é uma aberração. É preciso olhar além da briga cotidiana.

Lula falou que 50% do Orçamento foi sequestrado. Na verdade, é 50% dos recursos disponíveis, não do Orçamento como um todo, claro. Mais de 90% do dinheiro vai para despesa obrigatória ou tem destinação estabelecida na Constituição. Sobra pouco, e é esse restante que está em disputa.

A Comissão Mista de Orçamento desrespeitou o eleitor quando aceitou que os deputados Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem tivessem emendas no valor total de R$ 80 milhões. Um mora nos Estados Unidos desde março e não existe previsão legal para o exercício extraterritorial do mandato. O outro foi condenado a 16 anos, é foragido da Justiça, e há uma ordem judicial para que ele seja cassado, que a Câmara ainda não cumpriu. O absurdo passaria batido. Graças à jornalista Malu Gaspar, o país ficou sabendo que o comitê de admissibilidade da CMO havia aceitado o inadmissível. O ministro Flávio Dino então proibiu o Executivo de liberar emendas dos dois parlamentares. A decisão do ministro sequer seria necessária caso o Congresso tivesse tido o mínimo de bom senso.

Uma das funções mais importantes do parlamento é aprovar o Orçamento da União. No Brasil, contudo, virou um tormento a cada ano. Primeiro porque raramente o Congresso respeita o prazo de apreciar a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ela acabou de ser aprovada, em dezembro. A aprovação deveria preceder em meses a análise do Orçamento porque, como o nome diz, é da LDO é de onde saem as bases nas quais a proposta de Orçamento deve ser preparada. Segundo, porque a cada aprovação do projeto das diretrizes ou da lei orçamentária, o Congresso usa o poder que tem para encurralar o Executivo a exigir novas concessões. Sequestro com pedido de resgate.

Em vários países existem emendas parlamentares, em nenhum outro país chegam a esse volume. Além das emendas individuais, há as de comissão e as de bancada. O país viveu o trauma do orçamento secreto no governo passado. Depois do voto da ministra Rosa Weber julgando a prática como inconstitucional, voto seguido pelo plenário da Corte, o Congresso foi dando jeitinhos para continuar liberando despesas sem os critérios legais. O ministro Flávio Dino herdou a causa e toma decisões que o Congresso entende como invasão de outro poder, quando é cumprimento de princípio constitucional. O contribuinte tem o direito de saber como é gasto o dinheiro que ele se esforça para ganhar e que envia uma parte ao poder público, na expectativa de que seja usado de forma sábia e transparente.

O Congresso não tem o direito de abocanhar parte tão expressiva do Orçamento. As emendas não apenas cresceram, tornaram-se impositivas em grande parte. Na LDO deste ano a chantagem sobre o Executivo foi para aceitar que 65% sejam liberadas no primeiro semestre, para ajudar os parlamentares nas eleições. Os fundos partidário e eleitoral também têm volumes extravagantes. Tudo isso distorce o funcionamento da democracia.

O Congresso analisa e aprova o Orçamento. Mas quem executa é o Executivo. Quando o Congresso avança, como tem avançado sobre a execução das despesas, o país passa a viver uma anomalia. É bom lembrar que o crescimento das emendas e o orçamento secreto ocorreram no período em que Jair Bolsonaro estava na Presidência. Ele trabalhou os quatro anos para criar as bases para o golpe. Seu projeto não era governar, era minar a democracia e se perpetuar no poder. Por isso ele não se incomodou em entregar fatias gordas do Orçamento para que o Congresso usasse de forma opaca.

O desabafo do presidente Lula de que o Orçamento foi sequestrado tem razão de ser. Mas o seu próprio partido também se aproveita desse avanço de sinal. É preciso restaurar a normalidade porque a cada ano o Congresso exige mais uma concessão. Desta vez foi a obrigatoriedade de liberar 65% das emendas no primeiro semestre. Isso é problema para qualquer governo.

 

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