domingo, 7 de dezembro de 2025

A faixa e a cela: o Brasil que transforma presidentes em réus, por Christiany Fonseca*

Correio Braziliense

A prisão de ex-presidentes passou a compor o noticiário como se fosse previsão de chuva. Por que tantos presidentes transitam tão perto da ilegalidade?

No Brasil, a Presidência da República é a única função em que o ocupante sobe a rampa como monarca imaginário e, ao final, desce as escadas da história como investigado ou até como preso. É um cargo que oferece pompa, aparato oficial e plateia permanente, mas que devolve, inevitavelmente, o espelho mais cruel do poder: aquilo que o presidente fez quando acreditou que o país dormia. Aqui, o poder não transforma. O poder revela.

Da redemocratização para cá, sete presidentes chegaram ao topo do sistema político. Quase a metade terminou descobrindo o Estado sob outra perspectiva, a de quem conhece a burocracia não pela liturgia do cargo, mas pelas engrenagens do processo penal. Isso não é coincidência, não é azar estatístico e não é acidente histórico. É um ritual brasileiro que se repete com precisão irritante. Celebramos a posse como se fosse um épico nacional e assistimos ao pós-mandato como um inevitável acerto de contas.

Collor se tornou sinônimo de corrupção em um país que ainda aprendia a respirar a democracia. Temer mergulhou em investigações que lembravam enredo improvisado de thriller político. Lula atravessou o turbilhão da Lava-Jato, foi condenado, preso, libertado e viu suas condenações desmoronarem junto com a credibilidade daqueles que usaram o Judiciário como palco. Bolsonaro levou o caos institucional ao limite. Tentou golpe, desafiou decisões judiciais, acumulou descumprimentos, enfrentou prisão preventiva e, agora, começa a cumprir sua pena definitiva após o trânsito em julgado da condenação pela trama golpista.

São histórias distintas, mas o padrão é o mesmo. Quando a cúpula desaba, cai levando junto a confiança do país inteiro. O Código Penal, tão rápido para punir os vulneráveis, chegou ao andar de cima empurrado pelas circunstâncias. Chegou tarde, com relutância, mas acabou chegando. E, quando chega, não importa o tamanho do aparato que cercava o ex-presidente. A queda iguala todos.

Ao longo desse enredo, o sistema de justiça assumiu o protagonismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) pauta a semana. A Polícia Federal narra os fatos quase em tempo real. O Ministério Público produz capítulos dignos de série documental. A mídia repercute, dramatiza, interpreta e converte cada desdobramento em uma nova temporada desse ciclo político interminável. Nada muda, apenas se atualiza o escândalo.

É dessa dinâmica que nasce a polarização permanente. Para muitos, Lula foi vítima de perseguição disfarçada de moralidade judicial. Para outros, Bolsonaro é alvo de uma caçada institucional. E, para uma parcela crescente da população, nenhum deles tem credibilidade para reivindicar qualquer tipo de absolvição moral.

O país se transformou em um território em que a fidelidade importa mais do que a evidência. A narrativa virou arma política. A prova virou detalhe. A sentença virou termômetro de torcida. Quando a justiça passa a ser tratada como instrumento político, ela perde sua função de pacificar e ganha a capacidade de incendiar.

A primeira prisão presidencial provocou choque. A segunda dividiu o país. A terceira virou espetáculo absoluto. A quarta não surpreendeu ninguém. A prisão de ex-presidentes passou a compor o noticiário como se fosse previsão de chuva. O absurdo foi normalizado. Enquanto isso, quem não carrega sobrenome conhecido continua sendo preso em massa, sem destaque, sem defesa técnica, sem manchete e sem qualquer glamour de crise institucional.

Continuamos sendo um país que pune tarde. O sistema reage quando o golpe já foi tentado, quando o esquema já se consolidou, quando o prejuízo já é irreversível. É uma justiça que chega tarde demais para impedir e cedo demais para permitir que o país esqueça. A pergunta que evitamos fazer segue ecoando: por que tantos presidentes transitam tão perto da ilegalidade? Porque o poder ainda é visto como território livre. Porque quem chega ao topo acredita que o Brasil é tolerante demais para se indignar e lento demais para punir. A queda, por isso, deixa de ser apenas punição. Torna-se exposição pública, vexame nacional e lição torta de moralidade.

Até que o país decida impedir, em vez de remediar, vamos repetir essa coreografia desgastada. Presidente pela manhã, réu pelo entardecer, assunto do noticiário à noite. Tudo isso compõe a rotina política de um Brasil que conhece seus líderes por duas imagens opostas. A oficial, com faixa e sorriso calculado. E a verdadeira, registrada em processos, inquéritos e investigações.

*Cientista política e doutora em sociologia pela UFSCar

 

 

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