Na sociedade brasileira de nossos dias, de tal forma a dimensão da política se encontra rebaixada que quem quiser procurar se acercar, em meio aos múltiplos e complexos processos que transcorrem no nosso cotidiano, de quais poderiam ser os traços dominantes da natureza atual da sua conjuntura deve deslocar-se desse terreno e mirar para outras regiões do social. Na arena propriamente política, fora da teatralização de pequenos interesses, nada que registre, a não ser sintomaticamente, os antagonismos fortes que atuam sobre ela, tais como, entre outros, os que se originam do pacto federativo, da política salarial e das relações entre a indústria e o agronegócio, cujos vocalização e lugar de arbitragem se deslocam para o plano da administração, onde vige o princípio decisionista, e não o da deliberação na esfera pública entre vontades contrastantes.
Os partidos ou se deixam enredar nas malhas do governo por cálculo eleitoral e pelas conveniências das suas necessidades de reprodução política, ou aderem a ele sem apresentar a justificação de princípios que informem suas linhas de ação, caso até daqueles que se declaram vinculados a uma orientação doutrinária definida. Sob esse registro, o que vale é manter e expandir sua influência eleitoral, fora de propósito considerações em torno de uma ética de convicção.
Não à toa, a mais crua e melhor tradução desse estado de coisas veio a se manifestar com a criação de mais um partido, o Partido Social Democrático (PSD), que vem ao mundo como estuário de apetites mal resolvidos da classe política e sem declinar seu programa, mas já conta com uma das principais bancadas parlamentares. Nesse sentido, o PSD pode ser apresentado como o caso mais puro, expressiva figura típico-ideal, da estrutura partidária que aí está - isento de princípios, firmemente ancorado no cálculo estratégico dos seus membros e nas suas razões, orientadas, sans phrase, para fins instrumentais. Os partidos oposicionistas, por sua vez, dissociados dos interesses e das motivações ideais reinantes na sociedade civil, limitam-se às críticas adjetivas e de caráter procedimental, sem atingir o cerne da natureza da política do governo e do seu estilo tecnocrático na condução da administração dos negócios públicos.
Sem lugar, a política faz-se representar por seu simulacro, nessa cômica mascarada em curso em nome da racionalização e de uma pretensa busca pela primazia da ordem racional legal sobre práticas tradicionalistas, em que um dia de alvoroço provocado por denúncias de malversação de recursos públicos pode ser sucedido pela defenestração, sob aplausos e agradecimentos presidenciais, dos administradores acusados de pesadas irregularidades. Se eram inocentes, por que saíram? Se não, por que os aplausos?
O ator declina do seu papel e se abandona ao andamento dos fatos, na medida em que eles são identificados como portadores do sentido da História do Brasil. Vargas, JK, o regime militar, Lula, Dilma seriam atualizações encarnadas do espírito da Nação rumo aos objetivos de grandeza nacional, os quais, por mandato do destino, nos cabe realizar. Aqui, volta-se para o passado em busca de soluções, com os olhos cegos e os ouvidos moucos aos sinais e às vozes que nos vêm tanto das praças do Oriente retardatário como do Ocidente desenvolvido, com suas exigências de autonomia da cidadania diante do Estado e de auto-organização da vida social.
Pois é esse retorno a temas e soluções que prosperaram, entre nós, nos tempos de imposição autoritária do capitalismo que tem animado muitas das fabulações dos grandes protagonistas da cena atual, em particular as que gravitam em torno da questão nacional em sua versão desenvolvimentista. E aí se tem o eixo em torno do qual, hoje, gravita a conjuntura, tal como se faz indicar pela ampla difusão, no circuito da formação da opinião pública, do vocabulário afeto à dimensão sistêmica da economia.
No passado, o dito caminho nacional-desenvolvimentista, longe de consistir numa fórmula consensual entre os setores progressistas da sociedade, foi objeto de duras disputas entre o que seria uma via nacional-burguesa e a que lhe seria oposta, a democrático-popular, significando que ele era objeto de uma luta pela hegemonia a decidir que conjunto de forças político-sociais deveria estar à frente na forma da sua imposição. A dimensão sistêmica da economia estava ali, mas era uma entre outras, sobretudo porque, no campo democrático-popular, as razões que o animavam provinham do campo da política e de uma sociabilidade emergente que começava a experimentar os rumos de uma expressividade autônoma. Nele o moderno não se deixava subsumir à modernização.
Aquele foi o tempo de uma refundação cultural liderada por jovens que construíram suas identidades por fora de espaços institucionalizados, à margem do Estado e até das estruturas universitárias, como os do Cinema Novo, da Bossa Nova, do Centro Popular de Cultura e tantos outros que souberam, dotados de recursos quase artesanais, dar vida à agenda do moderno como lugar de autonomia e de emancipação. Também foi o tempo de lutas por emancipação dos setores subalternos, das cidades e do campo, quanto aos controles sociais exercidos sobre eles tanto pelas estruturas corporativas sindicais como pelo sistema do coronelismo rural.
Assim, se é para retornar a velhos repertórios, não há por que adotar o da preferência dessa tecnocracia iluminada, hoje na ribalta. Há outros disponíveis e que, se bem arranjados com os novos sons que nos chegam de toda parte, inclusive daqui, para quem se dispuser a ouvi-los, podem dar num bom samba, um desses que se tem gosto de cantar.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio
FONTE O ESTADO DE S. PAULO
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