Eu era menina ainda, mas já gostava de notícia. Grudei no rádio e fiquei ouvindo as informações da movimentação das tropas do general Olímpio Mourão Filho. O que eu não podia imaginar, por ser tão criança, é que aquele 31 de março era o começo de um tempo terrível que tiraria vidas da minha geração, produziria dor e obscurantismo, e que 49 anos depois ainda seria difícil revisitar.
Um professor americano me perguntou outro dia porque só agora o Brasil faz a sua Comissão da Verdade, já que a ditadura acabou em 1985. Eu respondi que o Brasil tem problemas de encarar seu passado, é meio atávico esse defeito. E que, de vez em quando, pintamos o cenário com outras cores para aceitar nossos erros, e daí decorrem teses como as da " mild slavery " (escravidão suave). Mas que, felizmente, estamos mexendo no que ficou congelado por um tempo excessivamente longo.
Na mesma semana me ligou Rosa Cardoso, que integra a Comissão da Verdade. E o que ela tinha a contar era muito. Naquele fim de semana (o último) haveria o encontro da Panair para ouvir, pela primeira vez em quase 50 anos, o que houve com a empresa que por perseguição política teve todas as rotas canceladas pelo governo e foi à falência. Ainda assim, os funcionários se reúnem frequentemente, vão com seus crachás para se reconhecerem tanto tempo depois. A empresa pagou todas as dívidas trabalhistas.
A Comissão da Verdade de São Paulo se preparava para ouvir - ouviu na semana passada - o depoimento de Inês Etienne dentro do capítulo de ditadura e gênero. Inês, que sobreviveu à Casa da Morte, tinha sido chamada, junto com outras pessoas, para falar das sevícias sexuais que atingiram tantas prisioneiras.
O corpo de João Goulart será exumado. Os especialistas ouvidos disseram que, talvez, os exames não sejam conclusivos, porque ele pode ter sido morto por um remédio que afeta o coração e que, tanto tempo depois, pode não ter deixado vestígios. A suspeita permanece.
Não há um único torturador que tenha passado um único dia na prisão pelo crime cometido, de tortura, morte e desaparecimento, como o do deputado Rubens Paiva, do estudante Alexandre Vanucchi, do líder Honestino Guimarães, do jovem Stuart Angel, do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho. São tantos. É difícil nomeá-los. Esquecê-los, impossível.
Ainda assim, os militares aposentados se reuniram nos seus clubes e acusaram quem hoje busca informações de ser "totalitário". Repetem a tese de ter havido dois lados. Pois é. Um lado era a juventude encurralada. O outro, o Estado com o poder exercido de forma ilegítima pelos militares, usando a sua força contra quem ousou discordar.
A Comissão da Verdade se descentralizou, outras vão se formando para investigar os vários eventos desse tempo que prometeu ser breve e se prolongou por 21 anos. O que fazer com as instalações onde pessoas sofreram e heróis perderam a vida? O antigo Dops do Rio é hoje o Museu da Polícia. Cheio de armas dos vários tempos. Impossível conviver com um memorial de presos políticos que deveria ter. O antigo DOI-Codi funcionava no quartel da Polícia do Exército na Barão de Mesquita, na Tijuca. Lá morreu Rubens Paiva, lá inúmeras pessoas foram torturadas, como Arthur Poerner, que narrou o que viveu num livro com o sugestivo nome de "Nas profundezas do inferno". Angel foi morto na Base Aérea do Galeão. A tortura foi disseminada, foram muitos os locais de sofrimento.
O passado deve passar. Eu, hoje, avó de meus netos, sei quanto tempo me distancia da menina grudada ao rádio em Caratinga naquele 31 de março. Mas minha convicção profunda é que, antes, é preciso cumprir o ritual da dolorosa visita ao passado.
Fonte: O Globo
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