Jogos de palavras costumam ser muito interessantes e reveladores, lançando luz inesperada sobre valores mais profundos, sistemas de crenças e ideias de quem os faz. Há muito se diz, por exemplo, que a vida brasileira, especialmente a política, se teria "americanalhado", entendendo-se por isso um indesejável processo - indesejável por todos os títulos - de cópia servil de modos de vida e consumo provenientes do grande e ambíguo país do Norte, a mais antiga e, sob certos aspectos, desgastada e até corroída experiência republicana ainda em vigor no mundo.
Desgastada e corroída, inclusive e sobretudo, pelo poder do dinheiro e, no entanto, dotada de irresistível expansividade por todo o século 20, como pelo menos um marxista clássico soube perceber in fieri, contrapondo a nascente racionalização americanista e fordista da produção e da sociedade ao acúmulo irracional de sedimentações do passado na velha Europa. Uma expansão que teria, por certo, dimensão imperial e intervencionista, em particular na América Latina, mas também se corporificaria na aliança antifascista com a antiga União Soviética (URSS), contribuindo para nos livrar do mal absoluto, em estado puro e sem nenhuma razão histórica.
Com tudo isso, alheia à ambiguidade do excepcional fenômeno americano e apegada a um velho repertório que insiste em não passar, uma certa esquerda latino-americana ainda combate "o diabo" e seus vapores sulfurosos, é verdade que teatralmente e, no fundo, sem induzir, ainda que moderada e gradualmente, mudanças estruturais na situação de dependência. A "americanalhação" - aceitemos o termo - difunde-se onde menos se esperaria, até mesmo em realidades menos conflituosas, e determina comportamentos aparentemente ilógicos, como no caso de presidente e ex-presidente que se transforma em vendedor internacional das grandes empresas do próprio país, num movimento que, se não é rigorosamente ilegal nem destituído de rationale estratégica, se choca, evidentemente, com a retórica eleitoralmente rendosa que demoniza as "elites" e o "capital".
"Americanalhamo-nos" também no plano interno. É possível que, carente de reflexão madura sobre os requisitos do moderno Estado Democrático de Direito, e ainda consumida pelo mal posto dilema de estar no governo e não ser poder - não ser todo o poder -, uma parte da nossa esquerda tenha considerado natural tentar apagar a fronteira entre partido, governo e Estado, dando seguidas mostras de apetite de ocupação e repartição selvagem do poder e de seus aparelhos, sob pretexto de fortalecer um Estado debilitado pela anterior época neoliberal.
Dispensamo-nos de discutir se tivemos nos anos 1990 - nos governos Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso - versões tropicais do fundamentalismo mercantil de Ronald Reagan ou Margaret Thatcher. Sumariamente, poder-se-ia dizer que não as tivemos, com a possível exceção de áreas mais doutrinárias do governo Collor. De todo modo, o fato é que a prática disseminada de ocupação e loteamento não só enfraquece o poder regulatório forte do Estado - num momento em que as autoridades da República convocam, em uníssono, o "espírito animal" dos investidores privados -, como também é sinal preocupante de americanização, no sentido pejorativo do termo.
Poderíamos sonhar em ver germinar por aqui, quem sabe, o exemplo de ex-presidentes como Jimmy Carter e Bill Clinton, ambos, e muito especialmente o último, com influência e visibilidade na política interna e na vida doméstica do Partido Democrata, mas sem projetarem a sombra de mando sobre os assuntos da República ou de titular das decisões em última instância. Nisso, contudo, não nos americanizamos; ao contrário, com sacudida pitada de malemolência made in Brazil, inventamos um ingrediente: em caso de quiproquó eleitoral, lá estará o "Pelé no banco de reservas".
Em momentos críticos do século 20, os Estados Unidos souberam se reinventar e, assim, ditar boa parte dos rumos do mundo, para o bem e para o mal, como qualquer concepção realista das relações interestatais pode compreender (e sob muitos aspectos, criticar). Nos anos 1930, em meio às soluções extremadas que se delineavam como vencedoras, o reformismo rooseveltiano indicou novos papéis para o Estado, bem como um compromisso progressista entre a instância pública, o mercado e a sociedade civil. Um exemplo alto, que, sucessivamente, ao demonstrar limites, seria ampliado ou corrigido pela Grande Sociedade de Lyndon Johnson (ele mesmo, o da agressão ao Vietnã e outros episódios equívocos da guerra fria) e agora retomado por Barack Obama, ao expandir a cobertura de saúde e ao enfrentar, por meio de nova regulação, as finanças descontroladas que estão na origem da grande crise em que nos vemos mergulhados.
Entre nós, no entanto, esse horizonte de longo prazo parece dissipar-se, em meio a um espírito autocongratulatório que exalta a inclusão social - absolutamente necessária, diga-se de passagem - em contexto de baixas taxas de desenvolvimento e, pior, sinais de enfraquecimento da estrutura produtiva, submetida a pressões que parecem pôr em questão a acidentada construção da nossa modernidade urbano-industrial e que, paradoxalmente, não mais provêm dos velhos núcleos do imperialismo. Logo, se isso for verdade, a retórica anti-ianque seria mais adequada a batalhas de guerras passadas, não exatamente às que temos pela frente.
Acima de tudo, não há de ser com Estado centralizador e concentrador (de poder e tributos) e, incidentalmente, com mandatário que se coloca voluntariamente como lame duck - o desajeitado "pato manco" do fim de mandato dos presidentes americanos - que haveremos de defender e reconstruir um moderno tecido produtivo, a rede de bem-estar que a ele corresponde e a vida associativa livre e plural de que formos capazes.
Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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