Com a publicidade governamental, agências vão ocupando o lugar das empreiteiras na arte de embaralhar interesses públicos e privados
Existe um escaninho dentro do Estado brasileiro em que o patrimonialismo não apenas sobrevive, como passa muito bem e nem nos diz obrigado. Nesse escaninho só seu, o neopatrimonialismo engorda, cresce e ocupa espaços cada vez mais espaçosos. Exibicionista, gosta de aparecer. Não se envergonha. É dado a melancias no pescoço.
O nome desse escaninho é comunicação governamental. Trata-se de rubrica muito especial da administração pública. Ostenta taxas exponenciais de crescimento. Nos governos estaduais, municipais e também no governo federal, os gastos para financiar a propaganda não param de aumentar. Na Prefeitura de São Paulo, o orçamento da publicidade oficial saltou de R$ 9,7 milhões em 2005 para R$ 126,4 milhões em 2011. No governo paulista, o ritmo de expansão não é menos intenso. Enquanto a gestão Geraldo Alckmin, de 2003 a 2006, destinou R$ 188 milhões à propaganda, a gestão José Serra, de 2007 a 2010, consumiu R$ 756 milhões no mesmo quesito - conforme revelou uma reportagem de Fernando Gallo, publicada no Estado no início deste mês. O agigantamento dos gastos das estatais paulistas acompanha a escalada: só a Sabesp, que não gastou R$ 10 milhões ao longo de 2003, ultrapassou a casa dos R$ 98 milhões em 2012.
Se as verbas da educação e da segurança se avolumassem nas mesmas taxas, a cidade e o Estado de São Paulo teriam a maior concentração de Prêmios Nobel do planeta e o governador não teria que sair por aí defendendo a redução da maioridade penal a cada novo latrocínio.
De seu lado, o Palácio do Planalto não fica para trás. Somados, os gastos da administração direta do governo federal (a Presidência da República e seus ministérios) e da administração indireta (as estatais, como Petrobrás e Banco do Brasil) vêm oscilando em torno da marca do bilhão de reais. No ano de 2009, houve um pico: R$ 1,7 bilhão. Era ano pré-eleitoral.
E não é só isso. Não é apenas por meio da propaganda paga que o erário financia a boa imagem do governo. Há outro quesito, no qual quase ninguém presta atenção: as assessorias de imprensa em escala industrial.
Agora, há uma semana, exatamente no domingo passado, o Estado publicou uma reportagem de João Domingos, Wilson Tosta e Isadora Peron que revela uma cifra eloquente: os dispêndios anuais do governo federal com as assessorias de imprensa - incluindo Presidência e ministérios - alcançam a casa dos R$ 97 milhões. E isso é apenas o aperitivo. "Cerca de 500 profissionais cuidam da imagem da administração, repassando informações oficiais a jornais, TVs, rádios e canais de internet privados", anota a reportagem. "Nas empresas estatais, como Petrobrás e Correios, a estimativa - elas não divulgam números - é de que o gasto chegue a R$ 250 milhões ao ano, com 1.200 profissionais envolvidos."
Parte desse serviço é terceirizada. Entre outras coisas, as empresas contratadas confeccionam peças em linguagem jornalística para emissoras do interior, que as reproduzem, além de atuar nas redes sociais, com o objetivo de fortalecer e difundir pontos de vista pró-governo.
Claro que um governo não apenas pode, mas deve ter assessores de imprensa. Bem preparados, esses profissionais facilitam o contato entre repórteres e autoridades. Desde que comprometidos com os princípios constitucionais da administração pública, melhoram o fluxo de informações de interesse público e contribuem para que o Estado seja mais transparente e acessível. Coisa diferente, bem diferente, é essa nova "estratégia de comunicação governamental", que leva o Estado a montar, ao lado da faraônica publicidade governamental, verdadeiras usinas de conteúdo que fabricam press releases em série com o objetivo de direcionar a opinião pública a favor da Presidência da República. Nesse caso, o que temos é o emprego do dinheiro público, dinheiro que por definição é de todos os cidadãos, para promover, direta ou indiretamente, a boa imagem de uns poucos: a imagem dos que governam.
Essa nova escola de "comunicação pública", vamos deixar bem claro, de pública não tem nada. É inteiramente privatizada, seja porque contrata empresas privadas para campanhas massivas e permanentes (muito além do que seria uma assessoria de imprensa, por assim dizer, republicana), seja porque, por meio da ferramenta da publicidade paga, transforma os governos em anunciantes comuns, comerciais. Com uma diferença nada sutil: enquanto a publicidade comercial ordinária procura vender um bem ou um serviço, a publicidade governamental não vende coisa alguma que não seja o sorriso do pessoal que manda.
Quem ganha com isso? Não é o cidadão. Quem ganha é somente o partido do governo, que turbina a própria popularidade e se cacifa para as próximas eleições. É por isso que a nova "comunicação pública" constitui uma nova modalidade de patrimonialismo, pois emprega os recursos públicos para beneficiar interesses privados (interesses partidários são interesses privados).
Depois alguns ainda se espantam quando verificam que, no Brasil, as agências de publicidade vão ocupando o lugar (que antes era só das empreiteiras) na arte macabra de embaralhar interesses públicos e privados.
* Eugênio bucci é professor da ECA-USP e da ESPM
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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