quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Marina Silva: Sustentabilidade e a República

- Valor Econômico

O Brasil já dispõe de tecnologia e competência empresarial. É possível fazer o país crescer sem destruir florestas

Ao longo das últimas décadas da história brasileira, sobretudo desde os anos da ditadura militar (1964/1985), acadêmicos de diferentes correntes teóricas vêm discutindo as prováveis causas de um grande paradoxo brasileiro: quais as razões profundas do atraso - em termos de sofríveis taxas de desenvolvimento humano, educacional, crescimento econômico e desigualdade social - de uma nação tão privilegiada em recursos naturais, terras férteis e diversidade cultural?

Análises como o Custo Brasil apontam para questões como o peso da burocracia, da carga tributária e da legislação trabalhista, os insuficientes investimentos em infraestrutura, ciência, tecnologia e em educação. Outros estudos falam em heranças culturais arraigadas, a exemplo do patrimonialismo, que fazem com que os agentes investidos de poder governamental, de maneira generalizada, tratem os bens públicos como privados, tirando assim a eficiência das políticas públicas e da gestão do Estado. E há inúmeras outras análises com foco em razões de ordem econômica, externas, de raízes históricas e sociais.

Mas nada foi tão impactante para demonstrar a complexa teia de razões do nosso atraso quanto os graves problemas revelados e expostos pela Operação Lava-Jato, que puxou o fio da meada de uma lógica perversa que tomou conta do Estado brasileiro.

Hoje, qualquer brasileiro sabe que uma das fortes razões de nosso precário desenvolvimento é um déficit democrático e de práticas efetivamente republicanas que abriu caminho para a corrupção institucionalizada e sistêmica. Ou seja, nosso sistema representativo afastou-se de tal forma de sua razão de ser - o interesse público negociado segundo regras universais - que a substituiu largamente pela razão da permanência no poder, força geradora de mais e mais corrupção.

Com o objetivo de se perpetuar no poder, grupos passaram a criar uma associação antirrepublicana e criminosa entre empresas, empresários e agentes públicos dos mais elevados níveis de responsabilidade, para incidir desde decisões sobre o tipo de investimentos públicos a serem feitos até leis a serem aprovadas para que interesses sejam atendidos. Processos licitatórios de obras como estádios, hospitais, rodovias, portos, aeroportos e hidrelétricas são estruturados para serem superfaturados e gerar milhões de reais para financiar agentes públicos, políticos e partidos políticos, em prejuízo dos recursos públicos e colocando em risco a proteção de bens que são patrimônio da sociedade brasileira, como tem acontecido com frequência com os recursos naturais.

Foi isso que permitiu a aprovação da Medida Provisória que legalizou cerca de 40 milhões de hectares de terras invadidas na Amazônia, numa atitude que estimula e fortalece ainda mais a cultura da impunidade e da criminalidade na região, os conflitos sociais, a violência contra comunidades extrativistas e povos indígenas e a destruição de áreas de elevada importância para a conservação ambiental pelo desmatamento, anulando os esforços nacionais de combate ao aquecimento global.

Quando anistiado de seus crimes com o amparo da lei, os infratores e criminosos ambientais sentem-se fortalecidos e passam a questionar o cumprimento de outras leis ao ponto de confrontar os órgãos de Estado, que procuram cumprir sua prerrogativa constitucional de preservar o meio ambiente, como foram os incêndios que aconteceram na sede do Ibama e do ICMBIO, no município de Humaitá (AM), como retaliação às ações de combate à atividade do garimpo ilegal na Amazônia.

Há um risco muito grande dessa lógica ganhar força de que se pode infringir a lei impunemente para tirar proveito próprio. Isso mina a credibilidade das instituições, para além do descrédito de seus ocupantes, e cria-se um ambiente propício ao desrespeito generalizado das leis. O novo Código Florestal, aprovado em 2012, enfraqueceu a proteção das florestas e anistiou todos que haviam desmatado florestas ilegalmente. Possibilitou o recrudescimento do desmatamento na Amazônia e em todos os demais biomas do Brasil. Dessa forma, reforçou a impunidade para crimes ambientais e fragilizou o sistema de governança socioambiental brasileiro.

O recente programa lançado pelo Ministério Público Federal (MPF) para ajudar no combate ao desmatamento ilegal na Amazônia é um importante passo para enfrentar os crimes ambientais e a impunidade. Com uso de tecnologia e monitoramento de satélites feitos entre agosto de 2015 e julho de 2016, o MPF identificou uma área desmatada de 176,7 mil hectares, com 1.155 responsáveis. Com essa informação, tomou a medida inicial de ingressar com 757 ações civis públicas na Justiça e cobrar indenizações de 725 pessoas, num total que ultrapassa R$ 1,5 bilhão.

É urgente e preciso fortalecer a institucionalização de ações que promovem uma outra cultura política no país, mais crente nos valores republicanos e da cidadania, menos conformista e mais propensa a exigir parâmetros efetivamente democráticos nas relações sociais e no status dos indivíduos perante o Estado. O resgate das funções republicanas de governar e legislar segundo parâmetros básicos do interesse público deve ser o ponto de partida para criação de um ambiente que impedirá que pessoas e empresas não vejam como "normal" acessar as decisões de governantes pelo atalho da propina e do esbulho dos bens públicos.

O Brasil tem vantagens comparativas que podem se tornar competitivas pelas exigências cada vez maiores do mercado internacional por uma economia sintonizada com as demandas desse século. O Brasil já dispõe de tecnologia, competência empresarial e inúmeras experiências em grande escala que provam isso: é possível fazer o país crescer sem destruir florestas. Refundar a República é condição sine qua non para criar esse ambiente de negócios onde a livre concorrência entre empresas possa promover eficiência, competitividade, obras adequadas e serviços públicos dignos para a sociedade.
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Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014.

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