segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Cacá Diegues: Quando o governo começar

- O Globo

Brasil é país política e culturalmente esquizofrênico, onde duas coisas opostas entre si podem estar acontecendo

Quando leio as notícias ou vejo o noticiário político na televisão, tenho sempre a impressão de que este governo só vai mesmo começar quando o presidente deixar o hospital onde se recupera, trocando-o pelo Palácio do Planalto. Não adianta me dizer que ele está despachando da enfermaria do Albert Einstein, em São Paulo. Quero vê-lo naquele cômodo modernoso, sentado àquela mesa ornamental onde víamos nossos chefes de Estado anteriores decidir com seus auxiliares o que fazer do país. Aí, sim, vou poder saber com clareza para onde estamos indo.

Fico feliz quando ele nega com veemência não ter censurado o filme da cura gay, “Boy Erased”, que a Universal retirou de cartaz antes de ele entrar em cartaz. Como fico preocupado quando o ministro da Educação diz as besteiras que disse à revista “Veja”, afirmando que foi o que ouviu do presidente, quando este o convidou a ocupar o posto. Ainda não sei direito, com exatidão, qual dos dois é o nosso chefe de governo. O que, além das razões humanitárias, me faz ficar ansioso para que ele se cure logo de seu intestino ferido no atentado boçal que sofreu durante a campanha.

Há algum tempo, li, em algum lugar, uma declaração do filósofo Mangabeira Unger dizendo que a eleição de Jair Bolsonaro era uma “resposta tosca” à aspiração legítima de um Brasil profundo. A gente nunca chega a conclusão alguma diante de uma frase como esta, mas o professor de Harvard tem razão. Se o Brasil o elegeu, é porque tinha algum plano para e com ele, baseado no que ele diz ou em como ele é. Como tenho a pretensão de bem conhecer o país que acompanho há tanto tempo, acho mais provável que o eleitor tenha se encantado mais com o estilo do que com a sintaxe. Mas o mistério continua e, quem sabe, só vai terminar depois que o presidente receber finalmente alta de seus médicos.


Pena que isso já não tenha acontecido, antes de tanta tragédia no país, neste início de ano. Certamente, teríamos pistas certeiras do que ele pensa e de como ele é, em função de como reagisse ao criminoso desastre em Brumadinho ou às consequências do temporal que caiu semana passada sobre o Rio de Janeiro.

Como ninguém votou em mim e não preciso me preocupar com isso, posso confessar que torci para que alguém tivesse o poder de somar, aos cerca de R$ 11 bilhões bloqueados da Vale, o simples fechamento da empresa por sua óbvia incapacidade de gerir negócio capaz de provocar tal tragédia, com mais óbitos num dia do que em semanas da cruenta guerra na Síria. Ou que evitei gargalhar, em respeito aos mortos no ônibus que atravessara a Avenida Niemeyer, quando nosso prefeito declarou que o acidente resultante do temporal no Rio só foi possível porque as causas vieram da montanha e não do mar, contra o qual a prefeitura já tinha tomado as providências necessárias.

Hoje, todo mundo sabe que o Brasil é um país politica e culturalmente esquizofrênico, onde duas coisas opostas entre si podem estar acontecendo simultaneamente, sem nem por isso causar espanto. Tenho paixão, por exemplo, pela abertura do livro “Retrato do Brasil”, do pensador modernista Paulo Prado. Neste seu “Ensaio sobre a tristeza brasileira”, ele diz que “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Somos o território brasileiro e nós. Mas nós bem que temos motivos para nossa tristeza, e eles não são apenas os que a inteligência de um antropólogo bem formado pode descobrir em nossa história.

Mesmo que não concordemos com o que ele diz, não podemos deixar de reconhecer em Paulo Guedes, além de um economista competente, um pensador capaz de propor suas ideias a partir de elaborações sofisticadas sobre o Brasil. E elas podem dar certo. Como não é possível desmerecer o esforço ideológico e técnico do ministro Sergio Moro, na sua ambição de nos oferecer uma legislação rigorosa que acabe com o crime organizado e a corrupção endêmica, coisas que alimentamos e combatemos desde o chamado “Descobrimento”.

Mas como é que esses empenhos virtuosos convivem, no mesmo espaço, com a senhora da goiabeira e a educação sem liberdade? Com o chanceler cada vez mais insensato e o vice-presidente cada vez mais sereno? De qual desses dois governos nosso presidente se sente mais próximo?

Agostinho de Hipona, filho de pai pagão e mãe cristã, que, vivendo entre a Antiguidade e a Idade Média, se tornaria bispo e santo, autor da primeira autobiografia da literatura ocidental, fundador da sabedoria moderna, dizia que apenas a fé não bastava. Ela deve estar sempre acompanhada da razão iluminada pelo livre arbítrio humano, o único meio de se conhecer a verdade de verdade.

Passadas as emoções da disputa eleitoral e as primeiras semanas de um eleito compulsoriamente ausente, vamos torcer para que o presidente suba finalmente a rampa do Planalto e nos governe com sabedoria e graça.

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