FHC diz que eleição explodiu o sistema, afirma que “fascismo” e “comunismo” são apenas fantasmas e que partido sem conexão com a sociedade estará liquidado
Por Ana Clara Costa | Revista Veja
Prestes a terminar o quarto volume de suas memórias do período em que ocupou a Presidência da República (1995-2002), Fernando Henrique Cardoso, de 87 anos, acredita que o momento político do Brasil requer “paciência histórica”. Diz que o país vive um período de transição, com o fim de um ciclo iniciado na Constituição de 1988, em que os partidos criados falharam em representar os anseios da sociedade. FHC afirma ser exagero ligar o governo Bolsonaro a um movimento “fascista”, apesar da migração das forças políticas para a direita. O tucano prega a construção de um “centro radical” para se opor a medidas extremas e declara que, se o PSDB não ocupar esse papel, ele não vê razões para continuar no partido. “Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.”
• O senhor tentou, no período eleitoral, criar uma força democrática de centro, e não deu certo. O que aconteceu?
Não houve interesse do eleitor em escolher o centro porque ele achou melhor botar ordem na casa. Quem simbolizou segurança, ordem e combate à corrupção ganhou. Não houve discussão econômica.
• Como ocorreu essa tentativa de costurar uma frente?
Estou mais fora da política do que as pessoas pensam. Mas eu acho o seguinte: quando há uma polarização como houve no Brasil, o medo prevalece acima de tudo. A razão perde sentido prático. As pessoas que querem ser razoáveis, como é meu caso, ficam sem espaço. Uns dizem “Eu sou o bem e quero extirpar o mal”. E, quando você diz “Cuidado, o bem e o mal são relativos, é preciso conviver”, você fala sozinho.
• Mas o senhor chegou a fazer um movimento concreto nesse sentido?
Eu falei com algumas pessoas, fiz uma ou outra reunião. Mas não estou no cotidiano do partido e acho também que não tinha mais espaço. A polarização não depende de você querer. Ela acontece. Quando a população descobriu as bases podres do poder, ficou contra o poder e quem o simboliza. Acho um absurdo que alguns tenham sido derrotados, gente séria, competente. Mas é assim que funciona. Política não é uma escolha de quem é mais competente, quem é melhor. É de quem, naquele momento, bate com o sentimento do eleitor.
• Como chegamos a esse estado de coisas?
Nossa visão do mundo político nasceu no século XIX e se consolidou no XX. Havia as classes, não necessariamente opostas umas às outras, e os partidos, que representavam uma ideologia pertinente aos interesses e valores dessas camadas. O mundo atual rompeu isso porque a mobilidade social aumentou, a coesão entre esses grupos diminuiu e há fluxos de dinheiro e comunicação muito grandes. O primeiro sociólogo que viu esse movimento chama-se Manuel Castells, meu colega em 1968 em Nanterre (na Universidade Paris X, na França, onde FHC lecionou) e meu amigo até hoje. A Sociedade em Rede, livro que Castells lançou em 1996, é, no fundo, isso. Estamos em um momento de transição, e a nova sociedade é dos que estão conectados. Essa conexão salta estruturas e até instituições nacionais.
“Os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Há uma guerra de narrativas. E narrativas em que não entra o povo”
• O Brasil vive um momento de desmonte das estruturas, ou, como o senhor diz em seu último livro, “uma nova era”?
Sociologicamente, eu diria que, nestas eleições, “a história se manifestou estourando tudo de maneira cega”. Há momentos em que há explosões, e aqui houve uma explosão limitada, mas foi uma explosão do sistema anterior. Então, há um processo geral que permeia todas as sociedades que estão conectadas. É preciso agregar a tremenda corrupção que houve ao horror que ela produziu. O povo se assustou e disse “basta!”
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