- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
O presidente eleito da República, radicalmente diferente de Lula, seu êmulo, fala pouco. Quando candidato, deixou a palavra com as redes sociais. O Twitter tem-lhe permitido dizer tudo quase sem dizer nada. Quem o lê inventa o complemento da mensagem, conforme a mentalidade de cada um. Pode ter sido bom para ganhar a eleição. Mas os algoritmos ideológicos dessas mensagens cifradas municiam os protagonistas da nova era política com opiniões que na verdade são concepções do senso comum e do cotidiano. É no terreno da incerteza intencional que o novo governo vai sendo montado.
Já a postura lulista de falar demais baseou-se e baseia-se num outro tipo de cumplicidade dos acólitos que traduzem a fala barroca do líder em língua ideológica e em diretriz partidária. O que se revelou um erro de quem se julga no mundo, mas não vê o mundo.
No caso de Bolsonaro, os extraordinários poderes das redes sociais e dos púlpitos pentecostais encarregaram-se de elaborar a imagem ficcional de um candidato da ordem. Não o que ele é, mas o que querem que ele seja. Como ocorreu com Lula, ele não sabe e nunca saberá quem de fato é, politicamente. Chegamos à era do poder da incerteza.
É fenômeno da mesma qualidade que caracterizou a ascensão de Luiz Inácio ao poder. Nesse caso, a população demonstrou, mais em 2002, menos em 2006 e menos ainda em 2010, que se insurgia contra a voracidade de ganhos e de poder de setores insaciáveis e inescrupulosos da elite.
A carta do PT ao povo brasileiro, no entanto, foi uma declaração de adesão a eles e um reconhecimento público de que pelo poder o partido estava disposto a aceitar a cooptação. E foi o que aconteceu. Lula e Dilma presidiram a República, mas o PMDB e seus aliados a governaram. Relembrando a frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em "O Leopardo", de que tudo deve mudar para que tudo fique como está.
Com mensagem radicalmente oposta à do petismo e do lulismo, Bolsonaro não é deles diferente no essencial. Seu silêncio pode estar refletindo o esgotamento do vocabulário de campanha, o da língua do antipetismo.
No caso dos dois, Lula e Bolsonaro, um sociólogo não pode deixar de identificar o uso instrumental de técnicas da etnometodologia do cientista social americano Harold Garfinkel. Em pesquisa financiada pelo Pentágono, ele desenvolveu um método sociológico de experimentação científica em que o pesquisador induz a interação social com o paciente, que alguns definem como vítima. Questiona seu senso comum para, na reação, suscitar o preenchimento dos vazios da relação social com o mero senso comum.
Sua ciência comprovou que o homem cotidiano tende a solucionar os estados de anomia, de ausência de ordem, como a que vivemos agora, retornando ao que era antes de seus ímpetos de mudança. A tendência social espontânea não é pela revolução, mas pela continuidade do mesmo. É o que estamos vendo no processo político brasileiro desde a campanha eleitoral de 2002.
Os indícios, porém, de fragilidade da ordem social imaginária, de manipulação, que a eleição sugere, podem ser apontados. Em 2002, do total de eleitores inscritos, 54,2% não votaram em Lula, 62,5 milhões de eleitores, 10 milhões mais do que os que nele votaram. Esse foi o seu índice de potencial ilegitimidade, fator de desaprovações e desconfianças, vácuo de legitimidade num caminho de potencial queda final. Essa é a base da dúvida política num regime democrático.
Agora, em 2018, o índice dos que não votaram em Bolsonaro é mais alto, 60,8% dos inscritos, 89 milhões e meio de eleitores, 32 milhões mais do que os que nele votaram. Seu índice de potencial ilegitimidade é muito maior do que o de Lula em 2002.
É aí que a cultura da boca fechada fará, e já está fazendo, seu estrago. É uma cultura de recusa do pensamento crítico, que Bolsonaro e os bolsonaristas, equivocadamente, definem como de esquerda. Equivocadamente, também, porque quem recusa a legitimidade da esquerda no mundo moderno fatalmente recusa a democracia cujos adeptos estão indicados no número dos que recusaram o voto ao vencedor. Isso não quer dizer que esse seja o número dos esquerdistas. Quer dizer apenas que esse é o número dos adversários potenciais do pensamento tosco e unilinear da direita.
As escolhas frágeis e tendenciosas na área da educação e da ciência sugerem muito claramente que o governo será inaugurado como um programa de guerra contra ideias, contra o conhecimento e contra a cultura. Serão, provavelmente, 39% contra 61%. Um jeito problemático de inaugurar um governo com a pretensão de ser um governo da ordem com base numa orientação política de guerra aberta contra o cerne da civilização, que é a da diversidade social e de ideias.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos - Crônicas de Poucas Palavras” (Com-Arte).
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