DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA
Me fizeram entrar e trancaram a porta. Um preso falou: "Não se preocupe, deita e dorme"
MORÁVAMOS À rua Visconde de Pirajá, 630, em Ipanema, esquina com Henrique Dumont, onde hoje há um obelisco.
Era 13 de dezembro de 1968, mal passava das sete da noite, quando chegaram João das Neves e Pichín Plá, nossos companheiros do Grupo Opinião. Iríamos ao cinema, junto com Vianinha, que logo deveria chegar. Teresa se aprontava no quarto, quando tocou a campainha da porta e eu fui atender, certo de que era o Vianinha. Mal abri a porta, um oficial do Exército, em roupa da campanha, perguntou se ali morava Ferreira Gullar, respondi que sim e ele entrou, seguido de dois soldados. "O senhor está preso por ordem do governo." Neste momento, Teresa interpelou o oficial: "O senhor tem um mandado de prisão contra meu marido?" Ele apontou para a televisão: "Não precisa ordem de prisão. Escute aí". Na tela, via-se a figura de Gama e Silva, ministro da Justiça da ditadura, lendo um documento: "Ficam suspensos todos os direitos dos cidadãos..." Era o Ato Institucional nº 5, que, ontem, fez 40 anos.
Pichín e João assistiam a tudo, apreensivos. Podia sobrar para eles, que eram também militantes na luta contra o regime. "Nosso cinema já era", disse a eles. "Vão vocês que já está quase na hora." Minha preocupação era evitar que o Vianinha entrasse ali. Os dois saíram. Vesti o paletó, que estava no espaldar de uma cadeira, e perguntei ao oficial: "Posso tomar água?" Entrei na cozinha, abri a geladeira, tirei do bolso a caderneta de endereço e joguei-a lá dentro, antes de pegar a garrafa.
Eles vasculharam demoradamente o apartamento. Em meu quarto, recolheram alguns exemplares de um jornal clandestino. Quando tentaram entrar no quarto onde estavam meus filhos, Luciana, a mais velha, de 13 anos, reagiu. Eles desistiram e saíram comigo para um jipão do Exército estacionado em frente ao edifício. Entramos e o veículo se dirigiu até a rua Francisco Sá, onde parou, descemos e entramos num restaurante. O oficial perguntou se eu queria comer alguma coisa, respondi que não. Eles comeram, voltamos para o jipe que tomou o rumo da Vieira Souto e parou em frente ao edifício onde morava Millôr Fernandes.
O oficial desceu com um dos soldados, mas não conseguiu entrar no prédio. Agora o veículo seguia pela Nossa Senhora de Copacabana, mas dobrou na Bulhões de Carvalho, como se fosse voltar para Ipanema. É que ali morava Paulo Francis. Foram até a entrada do edifício e voltaram. "O pilantra está viajando", disse o oficial (que era o famoso capitão Guimarães, hoje bicheiro e presidente da Liga das Escolas de Samba) ao soldado que dirigia o jipe. "Vamos para a Vila Militar."
Foi uma longa viagem. Finalmente chegamos, fui levado para uma sala onde me revistaram, me tomaram o relógio, a caneta, o chaveiro, a carteira de dinheiro e os documentos. Fui levado por um corredor escuro, ladeado de portas com grades de ferro. O soldado abriu uma dessas portas, acordando as pessoas que ali estavam.
Me fizeram entrar e trancaram a porta. Fiquei um tempo, atônito, quando um dos presos, de uns 50 anos, me falou: "São uns putos. Não se preocupe, deita aí e dorme".
Naquele xadrez, denominado X-13, havia quatro presos: Ferreira, o mais velho, dono de uma oficina de guarda-chuvas, acusado de guerrilheiro; um rapaz, de menos de 20 anos, da mesma organização, e dois outros presos por equívoco: um paraibano, recém-chegado ao Rio, por ter alugado inadvertidamente uma casa que servira de "aparelho" ao pessoal do Marighella; e finalmente, um funcionário público, por ter o mesmo nome de Antônio Callado, escritor e jornalista. Este, ao saber que eu era escritor e amigo de Callado, implorou-me: "Então, diga a eles que eu não sou o Antônio Callado que eles pensam que eu sou!" Era quase engraçado. "Mas como vou dizer, se estamos incomunicáveis?"
Três dias depois, chegou Paulo Francis, diretamente do hotel Waldorf Astoria de Nova York. Entrou pálido, assustado. À hora do almoço, não conseguiu comer. "A gororoba é intragável", disse-lhe, "mas sem comer não vai agüentar esta merda". Terminou comendo e, uma semana depois, batia nas grades, reclamando pelo almoço que demorava.
Em breve o xadrez estava superlotado. O primeiro a ser solto foi o falso Callado, depois o paraibano. Eu e Francis saímos, ambos, no dia 2 de janeiro. Fora o gás que soltaram na cela, passamos incólumes por ali. Mas aquilo era só o começo.
Correção: De Gaulle não forçou o Tesouro americano a trocar "bilhões" de dólares, como se leu na última crônica, mas US$ 300 milhões.
Me fizeram entrar e trancaram a porta. Um preso falou: "Não se preocupe, deita e dorme"
MORÁVAMOS À rua Visconde de Pirajá, 630, em Ipanema, esquina com Henrique Dumont, onde hoje há um obelisco.
Era 13 de dezembro de 1968, mal passava das sete da noite, quando chegaram João das Neves e Pichín Plá, nossos companheiros do Grupo Opinião. Iríamos ao cinema, junto com Vianinha, que logo deveria chegar. Teresa se aprontava no quarto, quando tocou a campainha da porta e eu fui atender, certo de que era o Vianinha. Mal abri a porta, um oficial do Exército, em roupa da campanha, perguntou se ali morava Ferreira Gullar, respondi que sim e ele entrou, seguido de dois soldados. "O senhor está preso por ordem do governo." Neste momento, Teresa interpelou o oficial: "O senhor tem um mandado de prisão contra meu marido?" Ele apontou para a televisão: "Não precisa ordem de prisão. Escute aí". Na tela, via-se a figura de Gama e Silva, ministro da Justiça da ditadura, lendo um documento: "Ficam suspensos todos os direitos dos cidadãos..." Era o Ato Institucional nº 5, que, ontem, fez 40 anos.
Pichín e João assistiam a tudo, apreensivos. Podia sobrar para eles, que eram também militantes na luta contra o regime. "Nosso cinema já era", disse a eles. "Vão vocês que já está quase na hora." Minha preocupação era evitar que o Vianinha entrasse ali. Os dois saíram. Vesti o paletó, que estava no espaldar de uma cadeira, e perguntei ao oficial: "Posso tomar água?" Entrei na cozinha, abri a geladeira, tirei do bolso a caderneta de endereço e joguei-a lá dentro, antes de pegar a garrafa.
Eles vasculharam demoradamente o apartamento. Em meu quarto, recolheram alguns exemplares de um jornal clandestino. Quando tentaram entrar no quarto onde estavam meus filhos, Luciana, a mais velha, de 13 anos, reagiu. Eles desistiram e saíram comigo para um jipão do Exército estacionado em frente ao edifício. Entramos e o veículo se dirigiu até a rua Francisco Sá, onde parou, descemos e entramos num restaurante. O oficial perguntou se eu queria comer alguma coisa, respondi que não. Eles comeram, voltamos para o jipe que tomou o rumo da Vieira Souto e parou em frente ao edifício onde morava Millôr Fernandes.
O oficial desceu com um dos soldados, mas não conseguiu entrar no prédio. Agora o veículo seguia pela Nossa Senhora de Copacabana, mas dobrou na Bulhões de Carvalho, como se fosse voltar para Ipanema. É que ali morava Paulo Francis. Foram até a entrada do edifício e voltaram. "O pilantra está viajando", disse o oficial (que era o famoso capitão Guimarães, hoje bicheiro e presidente da Liga das Escolas de Samba) ao soldado que dirigia o jipe. "Vamos para a Vila Militar."
Foi uma longa viagem. Finalmente chegamos, fui levado para uma sala onde me revistaram, me tomaram o relógio, a caneta, o chaveiro, a carteira de dinheiro e os documentos. Fui levado por um corredor escuro, ladeado de portas com grades de ferro. O soldado abriu uma dessas portas, acordando as pessoas que ali estavam.
Me fizeram entrar e trancaram a porta. Fiquei um tempo, atônito, quando um dos presos, de uns 50 anos, me falou: "São uns putos. Não se preocupe, deita aí e dorme".
Naquele xadrez, denominado X-13, havia quatro presos: Ferreira, o mais velho, dono de uma oficina de guarda-chuvas, acusado de guerrilheiro; um rapaz, de menos de 20 anos, da mesma organização, e dois outros presos por equívoco: um paraibano, recém-chegado ao Rio, por ter alugado inadvertidamente uma casa que servira de "aparelho" ao pessoal do Marighella; e finalmente, um funcionário público, por ter o mesmo nome de Antônio Callado, escritor e jornalista. Este, ao saber que eu era escritor e amigo de Callado, implorou-me: "Então, diga a eles que eu não sou o Antônio Callado que eles pensam que eu sou!" Era quase engraçado. "Mas como vou dizer, se estamos incomunicáveis?"
Três dias depois, chegou Paulo Francis, diretamente do hotel Waldorf Astoria de Nova York. Entrou pálido, assustado. À hora do almoço, não conseguiu comer. "A gororoba é intragável", disse-lhe, "mas sem comer não vai agüentar esta merda". Terminou comendo e, uma semana depois, batia nas grades, reclamando pelo almoço que demorava.
Em breve o xadrez estava superlotado. O primeiro a ser solto foi o falso Callado, depois o paraibano. Eu e Francis saímos, ambos, no dia 2 de janeiro. Fora o gás que soltaram na cela, passamos incólumes por ali. Mas aquilo era só o começo.
Correção: De Gaulle não forçou o Tesouro americano a trocar "bilhões" de dólares, como se leu na última crônica, mas US$ 300 milhões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário