Em "O Formigueiro", eu queria expor o "cerne claro" da palavra, materializado
no branco da página
Não vou discutir se o que escrevo, como poeta, é bom ou ruim. Uma coisa, porém, é verdade: parto sempre de algo, para mim inesperado, a que chamo de espanto. E é isso que me dá prazer, me faz criar o poema.
E, por isso mesmo, também, copiar não tem graça. Um dos poemas mais inesperados que escrevi foi "O Formigueiro", no comecinho do movimento da poesia concreta.
É que, após os últimos poemas de "A Luta Corporal" (1953), entrei num impasse, porque, inadvertidamente, implodira minha linguagem poética. Não podia voltar atrás nem seguir em frente.
Foi quando, instigado por três jovens poetas paulistas, tentei reconstruir o poema. Havíamos optado por trocar o discurso pela sintaxe visual.
Já em alguns poemas de "A Luta Corporal", havia explorado a materialidade da palavra escrita, percebendo o branco da página como parte da linguagem, como o seu contrário, o silêncio.
Por isso, diferentemente dos paulistas -que exploravam o grafismo dos vocábulos, desintegrando-os em letras-, eu desejava expor o "cerne claro" da palavra, materializado no branco da página.
Daí porque, nesse poema, busquei um modo de grafar as palavras, não mais como uma sucessão de letras, e sim como construção aberta, deixando à mostra seu núcleo de silêncio.
Mas não podia grafá-las pondo as letras numa ordem arbitrária. Por isso, tive de descobrir um meio de superar o arbitrário, de criar uma determinação necessária.
Ocorre, porém, que essas eram questões latentes em mim, mas era necessário surgir a motivação poética para pô-las em prática.
E isso surgiu das próprias letras, que, de repente, me pareceram formigas, o que me levou a uma lembrança mágica, de minha infância, em nossa casa, em São Luís do Maranhão.
A casa tinha um amplo quintal, em que surgiu, certa manhã, um formigueiro: eram formigas ruivas que brotavam de dentro da terra.
Eu ouvira dizer que "onde tem formiga tem dinheiro enterrado" e convenci minhas irmãs a cavarem comigo o chão do quintal de onde brotavam as formigas. E cavamos a tarde inteira à procura do tesouro que não aparecia, até que caiu uma tempestade e pôs fim à nossa busca.
Foi essa lembrança que abriu o caminho para o poema, mas não sabia como realizá-lo. Basicamente, eu tinha as letras, que me lembravam formigas, mas isso era apenas o pretexto-tema para explorar a linguagem em sua ambiguidade de som e silêncio, matéria e significado. Que fazer então?
Como encontrei a solução, não me lembro, mas sei que não surgiu pronta, e sim como possibilidades a explorar.
Tinha a palavra "formiga", que era o elemento cerne. Experimentei desintegrá-la -numa explosão que dispersou as letras até o limite da página- e depois a reconstruí numa nova ordem: já não era a palavra "formiga", e sim um signo inventado. Foi então que pensei em grafar as palavras numa ordem outra e que nos permitisse lê-las.
Em seguida, surgiu a ideia mais importante para a invenção do poema: constituir um núcleo, formado por uma série de frases dispostas de tal modo que as letras de certas palavras servissem para formar outras. Nasceu o núcleo do poema, a metáfora gráfica de um formigueiro.
Ele surgiu da conjugação das seguintes frases: "A formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe".
Construído esse núcleo, o poema nasceu dele, palavra por palavra, sendo que cada palavra ocupava uma página inteira e suas letras obedeciam à posição que ocupavam no núcleo. Desse modo, a forma das palavras nada tinha da escrita comum. Não era arbitrária porque determinada pela posição que cada letra ocupava no núcleo.
"O Formigueiro" foi, na verdade, o primeiro livro-poema que inventei, muito embora, ao fazê-lo, não tivesse consciência disso.
Chamaria de livro-poema um tipo de criação poética em que a integração do poema no livro é de tal ordem que se torna impossível dissociá-los. Nos livros-poemas posteriores, essa integração é maior, porque as páginas são cortadas para acentuar a expressão vocabular. O livro-poema é que me levou a fazer os poemas espaciais, manuseáveis, e finalmente o poema-enterrado, de que o leitor participa, corporalmente, entrando no poema.
FONTE: ILUSTRADA/FOLHA DE S. PAULO
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