domingo, 5 de julho de 2015

Os arquivos do delator

• As anotações e as planilhas que revelam como funcionava o esquema de corrupção que unia governo, políticos e empreiteiros no saque ao caixa da Petrobras

Robson Bonin – Veja

O engenheiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, é famoso por sua grande capacidade de organização – característica imprescindível para alguém que exercia uma função vital no chamado "clube do bilhão".

Ele foi apontado pelos investigadores como o chefe do grupo que durante a última década operou o maior esquema de desvio de dinheiro público da história do país. O empreiteiro entregou à Justiça dezenas de planilhas com movimentações financeiras, manuscritos de reuniões e agendas que fazem do seu acordo de delação um dos mais contundentes e importantes da Operação Lava-Jato. O material constitui um verdadeiro inventário da corrupção. Em uma série de depoimentos aos investigadores do Ministério Público, Pessoa detalhou o que fez, viu e ouviu como personagem central do escândalo da Petrobras. Na seqüência, apresentou os documentos que, segundo ele, provam tudo o que disse.

VEJA teve acesso ao arquivo do empreiteiro. Um dos alvos é a campanha de Dilma de 2014 e seu tesoureiro, Edinho Silva, o atual ministro da Comunicação Social. Segundo o delator, ele doou 7,5 milhões de reais à campanha depois de ser convencido por Edinho Silva. "O senhor tem obras no governo e na Petrobras, então o senhor tem que contribuir. O senhor quer continuar tendo?", disse o tesoureiro em uma reunião. O empreiteiro contou que não interpretou como ameaça, mas como uma "persuasão bastante elegante". Na dúvida, "para evitar entraves" nos seus negócios com a Petrobras, decidiu colaborar para que o "sistema vigente" continuasse funcionando — um achaque educado. Mas há outro complicador para Edinho: quem apareceu em nome dele para fechar os detalhes da "doação", segundo Pessoa, foi Manoel de Araújo Sobrinho, o atual chefe de gabinete do ministro. Em plena atividade eleitoral, Manoel se apresentava aos empresários como funcionário da Presidência da República. Era outro recado elegante para que o alvo da "persuasão" soubesse com quem realmente estava falando.

Lula e a conta secreta no exterior
O documento reproduz a movimentação de uma conta secreta na Suíça aberta pelos empreiteiros para pagar propina. Segundo Ricardo Pessoa, foi dela que saíram 2,4 milhões de reais que reforçaram o caixa da campanha do ex-presidente Lula em 2006 — dinheiro desviado dos cofres da Petrobras que chegou ao Brasil em uma operação financeira totalmente clandestina e ilegal. O delator contou que a UTC, a lesa, a Queiroz Galvão e a Camargo Corrêa formavam o consórcio que venceu a licitação para construir três plataformas de petróleo. Como era regra na estatal, um porcentual do contrato era obrigatoriamente reservado para subornos. A conta foi criada para o "pagamento de comissionamentos devidos a agentes públicos em razão das obras da Petrobras, ou seja, o pagamento de propinas", disse Pessoa. Ela também ajuda a dificultar o rastreamento de corruptos e corruptores. Foi dessa fonte clandestina que saiu o dinheiro que ajudou Lula a se reeleger.

Para comprovar a existência da conta secreta, o empreiteiro apresentou ao Ministério Público extratos com as movimentações. Batizada de "Controle RJ 53 — US$", a planilha registra operações envolvendo 5 milhões de dólares em pagamentos de propina. Além de financiar o caixa dois de Lula, a conta suíça foi utilizada para pagar os operadores do PT na Petrobras. Entre as movimentações listadas pelo empreiteiro estão pagamentos ao ex-gerente de Serviços da Petrobras Pedro Barusco, um dos responsáveis pela coleta das propinas destinadas ao PT. Os repasses à campanha de Lula foram acertados entre Ricardo Pessoa e o então tesoureiro petista, José de Filippi. Era o próprio empreiteiro que levava os pacotes de dinheiro ao comitê da campanha em São Paulo. A entrega, como VEJA revelou em sua edição passada, era cercada de medidas de segurança típicas de organizações criminosas. Ao chegar à porta do comitê, o empreiteiro dizia a senha "tulipa". Se ele ouvia como resposta a palavra "caneco", seguia direto para a tesouraria. Se confirmados pela Justiça, os pagamentos via caixa dois são a primeira prova de que o ex-presidente Lula também foi beneficiado diretamente pelo petrolão.

A planilha do caixa dois
Em sua delação, Ricardo Pessoa disse que distribuir dinheiro para campanhas políticas fazia parte da estratégia de suas empresas para permitir "que a engrenagem andasse perfeitamente, tirando as pedras do caminho e abrindo portas no Congresso, na Câmara e em todos os órgãos públicos". Em 2010, segundo a planilha de doações apresentada ao Ministério Público pelo empreiteiro, algumas dessas pedras foram removidas com dinheiro do chamado caixa dois. Na lista aparece o nome de quinze candidatos que receberam recursos "por fora", sem registro oficial. O documento é dividido em três colunas: as doações "realizadas pela UTC", as doações "realizadas pela Constran" e "pedido". É justamente nessa última coluna que o delator anotou os repasses ilegais. Nela, constam como beneficiados o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, e o senador do PSDB, Aloysio Nunes. O ministro, segundo o empreiteiro, recebeu 500 000 reais em doações oficiais (250000 da UTC e 250 000 da Constran) mais 250 000 reais em dinheiro vivo para a sua campanha ao governo de São Paulo. Já o senador recebeu 300 000 reais da UTC e 200000 reais em dinheiro vivo.

Tanto o senador quanto o ministro refutaram as acusações. Mercadante admite apenas ter recebido as doações legais. Aloysio Nunes também. Além do senador e do ministro da Casa Civil, destacam-se na relação do caixa dois da UTC o ex-ministro do PMDB Hélio Costa (250000 reais), que concorria ao governo de Minas Gerais, o ex-tesoureiro petista e atual secretário de Saúde da prefeitura de São Paulo, José de Filippi Júnior (150 000 reais), o ex-deputado do PR e mensaleiro Valdemar Costa Neto (200 000 reais), o líder do PP na Câmara Eduardo da Fonte (100 000 reais) e o deputado do DEM Jorge Tadeu Mudalen (200000 reais).

A "compra" da CPI e os partidos-laranja
Quando viajou a Brasília, no ano passado, para se reunir com o então líder do PTB no Senado, Gim Argello, Ricardo Pessoa estava assustado com a possibilidade de ser convocado para depor na CPI da Petrobras. Encarar os parlamentares no meio das investigações da Lava-Jato não era uma opção. Antes de aceitar pagar a Gim Argello alguns milhões de reais para impedir a sua convocação, Ricardo Pessoa quis ter a certeza de que o senador, como vice-presidente da comissão, teria mesmo condições de entregar o prometido. Deu-se o seguinte diálogo:

— Você garante que não vou ser convocado? — perguntou Pessoa.

— Garanto! — respondeu Gim.

— 100%? — insistiu Pessoa.

— 100% ninguém pode ser. É 90%! — prometeu Gim.

O acordo foi fechado em 5 milhões de reais. Para camuflar o suborno, o dinheiro foi repassado na forma de doações eleitorais aos diretórios de quatro partidos controlados pelo senador governista no Distrito Federal — PR, DEM, PRTB e PMN. O empreiteiro entregou aos investigadores uma planilha listando as operações. A CPI terminou sem apurar nada e sem importunar Ricardo Pessoa. O delator contou que também doou 150 000 reais à campanha do deputado Júlio Delgado com o mesmo objetivo. O pagamento, segundo ele, foi realizado por intermédio do presidente do PSB de Belo Horizonte. Júlio Delgado nega o acordo e garante que não recebeu nada.

A "conta-corrente" JVN
O dono da UTC entregou muito dinheiro em espécie nas mãos de João Vaccari Neto. Precisamente 3,9 milhões de "pixulecos" — como o ex-tesoureiro do PT chamava as propinas que recebia. Os detalhes estão na planilha identificada como "JVN-PT", na qual o empreiteiro registrou as datas e os valores de onze repasses feitos ao tesoureiro entre 2008 e 2013. Ricardo Pessoa contou aos investigadores que começou a pagar propina a Vaccari depois que a Petrobras iniciou uma série de grandes investimentos no setor de óleo e gás. "A partir daí (2007), todas as obras licitadas na Petrobras passaram a representar "motivo" para novas e grandes contribuições políticas ao PT e ao PP, partidos diretamente ligados às nomeações das diretorias", informou Pessoa. O delator fez ainda uma anotação de próprio punho que não deixa dúvida sobre a natureza do documento: "caixa 2". Ou seja, Vaccari mantinha um caixa dois dentro do caixa dois do PT.

A JVN-PT era a conta que o tesoureiro tinha na UTC para bancar suas despesas de varejo. Preso há quase três meses em Curitiba, João Vaccari, o Moch, referência à sua inseparável mochila preta, mantinha negócios escusos com vários empresários, mas com Ricardo Pessoa as relações beiravam a camaradagem. O empreiteiro contou que repassou 15 milhões de reais ao tesoureiro. O pagamento foi condição para que a UTC ingressasse no consórcio escolhido pela Petrobras para construir o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). Pessoa narrou aos investigadores que pagava propina ao PT "de modo contínuo", por meio de doações oficiais e também de repasses clandestinos. Era tanto dinheiro que o delator mantinha em seu computador uma planilha exclusiva para registrar o fluxo dos recursos. Dessa conta-propina também saíam os "pixulecos" para manter o luxo de alguns dirigentes do partido, como se verá a seguir.

Propina disfarçada de consultoria
O petista José Dirceu ganhou muito dinheiro. Desde que deixou a Casa Civil abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, o ex-ministro recebeu cerca de 39 milhões de reais oficialmente fazendo consultorias para o setor privado. As investigações da Operação Lava-Jato, no entanto, desvendaram a verdadeira natureza dos serviços do mensaleiro. Em sua delação premiada, o empreiteiro Ricardo Pessoa apresenta documentos que mostram que as consultorias nada mais eram do que fachada para o recebimento de dinheiro desviado da Petrobras. O dono da UTC contou aos investigadores que foi procurado pelo ex-ministro em meados de 2012. Dirceu, que exercia forte influência sobre os diretores da Petrobras, ofereceu ao empreiteiro os seus serviços de consultor. Assim como no caso do pedido de Edinho Silva, negar dinheiro a Dirceu poderia ser sinônimo de problemas. Melhor não arriscar. Afinal de contas, os negócios iam muito bem. O empreiteiro fechou um acordo para pagar 1,4 milhão de reais ao mensaleiro. O objeto do contrato: prospectar negócios no exterior.

A única coisa que José Dirceu prospectou foram aditivos ao contrato. Sem nenhum tipo de serviço prestado, o consultor conseguiu mais 906000 reais da UTC no ano seguinte. Quando a última parcela desse segundo contrato venceu, Dirceu já fazia parte da população carcerária do presídio da Papuda, em Brasília. Mas nem a prisão foi capaz de atrapalhar os negócios do ex-ministro. Ricardo Pessoa contou aos investigadores que, a pedido do próprio Dirceu, assinou um segundo aditivo, de 840000 reais. O contrato foi firmado quando o mensaleiro já estava no terceiro mês de prisão. "Apenas e tão somente em razão de se tratar de José Dirceu e da sua grande influência no PT é que, mesmo sabendo da impossibilidade de ele trabalhar no contrato firmado, porque estava preso, o aditamento foi feito e as parcelas continuaram a ser pagas", disse o dono da UTC aos procuradores. O mais impressionante: como a tabela acima comprova, metade do dinheiro pago pela UTC a Dirceu foi debitada com autorização de Vaccari da conta-corrente que a empreiteira administrava para o PT. Ou seja, o ex-ministro foi pago com propina da Petrobras.

O homem que fabricava dinheiro
Para não deixarem rastros, os criminosos evitam usar o sistema financeiro e recorrem a doleiros e operadores para produzir o combustível da corrupção: dinheiro vivo. Ricardo Pessoa tinha o seu fornecedor de dinheiro, o empresário Adir Assad, que está preso há quatro meses. A Polícia Federal já sabe que Assad utilizava suas empresas para "esfriar" dinheiro. Funcionava assim: a UTC simulava a contratação de Assad para justificar a saída de recursos do seu caixa. O empresário, por sua vez, emitia uma nota fiscal e recebia uma comissão pelo serviço que não existia. Pronto, o dinheiro podia ser entregue aos corruptos sem deixar pistas de sua origem. Ricardo Pessoa entregou uma planilha de quatro páginas que demonstra o volume de recursos envolvidos no petrolão. Entre 2007 e 2013, o "fabricante de dinheiro" entregou ao dono da UTC nada menos que 76,6 milhões de reais em dinheiro vivo. A bolada serviu para fazer doações clandestinas, pagar propinas e outras finalidades nada nobres. Apenas em 2008, ano de eleições municipais, Adir Assad "fabricou" 9,1 milhões de reais para a UTC. As notas fiscais fajutas foram emitidas em nome das empresas SM Terraplenagem e Rock Star. Em 2010, durante as eleições presidenciais, Assad entregou 15 milhões de reais ao empreiteiro. Nessa época, ainda não havia pagamento de propina disfarçado de doações oficiais.

Os achacadores (Fernando Collor, Edison Lobão e...)
Empreiteiro que depende do governo, Ricardo Pessoa era um alvo preferencial de políticos e partidos que criam dificuldades para vender facilidades. Como é uma pessoa metódica, os achaques estão detalhadamente descritos em suas agendas e os pagamentos, anotados em planilhas. É desse arquivo que sai a tabela "Controle de compromissos RJ/Norte", o documento que registra os 20 milhões de reais pagos ao senador Fernando Collor (PTB-AL) e a seu operador, o empresário Pedro Paulo Leoni Ramos. Acertada depois que Collor e seu grupo ajudaram o dono da UTC a fraudar uma licitação de 650 milhões de reais na BR Distribuidora, a propina começa a cair na "conta-corrente" de Collor e "PP", como Pedro Paulo é identificado no documento, em dezembro de 2010. A tabela mostra que os pagamentos mensais se estenderam até julho de 2012. "É bom esclarecer que o valor solicitado para que a UTC garantisse a vitória no contrato só foi aceito neste patamar levando-se em consideração quem estava por trás de Pedro Paulo", diz o documento em poder do Ministério Público.

Ricardo Pessoa descreve em detalhes outras situações de achaques oriundos de dois importantes quadros do governo da presidente Dilma Rousseff. Ele contou que, no ano passado, o então ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, recebeu 1 milhão de reais apenas para não criar obstáculos à UTC na obra de Angra 3. O mesmo procedimento foi adotado com Sergio Machado, então presidente da Transpetro, que recebeu 1 milhão de reais para manter-se sensível aos pleitos da empresa na Petrobras. A lista de aproveitadores é extensa.

As valiosas informações do TCU
Pagar por informações privilegiadas e influência em órgãos estratégicos era um dos estratagemas do empreiteiro para evitar "pedras no caminho" da UTC. Filho do atual presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Aroldo Cedraz, o advogado Tiago Cedraz foi pago para atuar nessa área. "Tiago foi contratado para buscar, de forma antecipada, informações no TCU sobre questões e temas em debate que interessassem à empresa", explicou Ricardo Pessoa. Ele contou que, graças ao prestígio do pai no TCU, Tiago transitava pelos gabinetes do tribunal com rara desenvoltura. Tinha condições, portanto, de antecipar resultados de processos e até sensibilizar colegas do pai sobre os interesses da UTC. Por um serviço tão especial, Tiago Cedraz foi muito bem remunerado, como mostra a relação de pagamentos entregue por Pessoa aos investigadores. Na tabela "Tiago — BSB" estão listadas nada menos do que 25 operações que, somadas, totalizam 2,2 milhões de reais. Só pelo lobby no TCU em defesa da UTC nos contratos de Angra 3, por exemplo, Tiago recebeu um prêmio de 1 milhão de reais em espécie. A bolada foi paga em 23 de janeiro de 2014 — uma parte entregue em Brasília e a outra retirada diretamente na sede da empresa, segundo Ricardo Pessoa. Sem nenhum contrato formal, Tiago Cedraz recebia mensalmente 50000 reais em dinheiro para obter "informações de inteligência" no TCU. O advogado confirma que trabalhou para a UTC, mas nega que tenha atuado na corte presidida pelo pai.

A conta "particular" do tesoureiro de Lula
O tesoureiro José de Filippi Júnior não usava seus talentos apenas para conseguir dinheiro para a campanha do ex-presidente Lula. Ele também se valia dos empreiteiros para faturar algum para si. Ricardo Pessoa entregou aos investigadores uma planilha de pagamentos realizados a Filippi Júnior. Os valores e as datas dos repasses estão registrados no arquivo "Filipi Diadema". Segundo o empreiteiro, além de 150 000 reais "por fora" dados a sua campanha para deputado federal em 2010, o tesoureiro recebeu 750 000 reais entre 2010 e 2014. Para não chamar atenção, ele mandava um taxista buscar os pacotes de dinheiro na sede da UTC. Os pagamentos eram previamente acertados por e-mail. Pessoa explicou por que a UTC deu dinheiro a Filippi: "José de Filippi Júnior era a conexão direta com João Vaccari, pessoa com alta influência na Petrobras e também junto aos candidatos à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff".

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