O Estado de S. Paulo
Sobram razões para nos preocuparmos com uma
nova e pior onda de desentendimentos, uma vez que religião e política não dão
boa liga
Desde 1945, o Brasil padeceu sob ao menos
duas desavenças políticas profundas, e é possível que a mescla do bolsonarismo
com o ativismo eleitoral de uma parte dos evangélicos resulte numa terceira,
quiçá pior que as anteriores.
Comparando com outros países, creio poder
afirmar que o Brasil não é difícil de governar. Dias atrás, tive o prazer de
ler uma breve história da revolução japonesa de 1868 (A Revolução Samurai),
escrita por Luiz Paulo Lindenberg Sette, nosso embaixador no Japão em 1986.
Imagine o leitor se nossos políticos tivessem de enfrentar uma complicação
daquele tamanho. Um país que se caracterizava por guerras sem fim, depois gozou
uma relativa paz no período Tokugawa, mas continuou incapaz de superar seu
indescritível atraso. Com pouco território, dependia totalmente da produção de
arroz e mantinha-se rigorosamente fechado ao exterior. Foi a partir da
restauração da dinastia Meiji que uma nova elite conseguiu virar tudo de cabeça
para baixo, acabou com o feudalismo e em três décadas transformou o país numa
grande potência industrial e militar.
Nós, em tal situação, estaríamos evidentemente num mato sem cachorro. Com problemas muito menores, tivemos dois momentos de sérios confrontos desde 1945, e estamos vendo a situação piorar novamente em razão do ingresso de um componente religioso na política eleitoral.
A primeira desavença grave, no segundo
pós-guerra, deveu-se, como todos se recordam, ao rastro de ódio deixado pela
ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945). Sob a espessa camada ideológica trazida
pela “guerra fria” (Estados Unidos x URSS), o confronto entre getulismo e
antigetulismo envenenou não direi toda a sociedade, mas sim as camadas médias
urbanas e as elites políticas, quase inviabilizando o convívio entre os
protagonistas diretos da vida pública. O potencial de violência inerente à
clivagem getulismo x antigetulismo aumentou muito devido, de um lado, à
pretensão do ex-ditador de voltar ao comando do País num papel escancaradamente
populista e, do outro, à virulenta oposição que lhe fez o deputado e jornalista
Carlos Lacerda.
A segunda desavença aconteceu no período
1961-1964. Com o benefício do retrospecto, podemos afirmar sem vacilação que
Jânio Quadros se fez presidente em 1960 com um enredo de golpe já alinhavado em
sua mente (e com o escandaloso apoio de uma parte da União Democrática Nacional
– UDN). Nem completara oito meses de governo e já enviava ao Congresso uma
carta-renúncia, cogitando, como é óbvio, que o “povo” se mobilizaria para
levá-lo de volta ao Planalto, motivado pela batalha verbal em que o Congresso
supostamente se envolveria. Um dos erros de Jânio – sem dúvida, o maior – foi
subestimar a astúcia do senador Auro de Moura Andrade, que desfez a trama com
meia dúzia de palavras: “Renúncia não se discute. É ato unilateral.
Arquive-se”.
O “arquive-se” só não dissipou os perigos
que rondavam o País porque uma Junta Militar tomou a desassisada decisão de
vetar a posse de João Goulart, legitimamente eleito como vice de Jânio. Em
viagem à China, Jango (como era chamado) recebeu da junta a informação de que
seria preso assim que pisasse em solo brasileiro. Deu-se que Leonel Brizola,
cunhado de Jango, à época governador do Rio Grande do Sul, convocou a Brigada
Militar de seu Estado, disposto a enfrentar a Junta Militar no campo das armas.
A saída, como é de conhecimento geral, foi um acordo pelo qual Jango assumiria
como chefe de Estado num parlamentarismo de improviso, cabendo a Tancredo Neves
a função de chefe de governo. Jango aceitou tal arranjo, mas provavelmente não
esperou sequer dez minutos para começar a trabalhar contra ele, ou seja, para
reaver os poderes presidenciais em sua plenitude. Atingiu seu objetivo por meio
de um plebiscito realizado no dia 6 de janeiro de 1963, e vestiu imediatamente
o figurino populista, convocando o País para a implantação de um mal-ajambrado
programa de “reformas de base”, cujo carro-chefe seria a reforma agrária.
Resultado: foi deposto 450 dias após reassumir a “plenitude” da presidência,
ocupada pelos militares pelos próximos 21 anos.
Resumindo, sobram razões para nos
preocuparmos com uma possível terceira onda de desentendimentos, com potencial
para ser pior que as duas anteriores, uma vez que religião e política
decididamente não dão boa liga. Temos, de um lado, Luiz Inácio da Silva,
“costeando o alambrado”, quero dizer, agindo com cuidado, sem cutucar o
adversário com o assunto religião. Mas não há como esquecer que Lula está
candidato por uma simples razão processual (ainda não foi julgado em quarta
instância pela penca de acusações que pesa sobre ele). Do outro lado, Jair
Bolsonaro, agressivo, destemperado, sempre disposto a desrespeitar as regras do
jogo democrático, fazendo de tudo para mobilizar o apoio evangélico.
Convenhamos que não é um bom enredo, ainda mais num momento em que o
Legislativo e o Judiciário dão seguidas mostras de mediocridade e a economia
permanece mergulhada na estagnação.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Seu último livro é ‘Imagens da virtude e do poder’ (Editora Desconcertos)
Um comentário:
Querendo ou não a tragetória Política do LULA será sempre a corda bamba do Golpe, seu discurso em colocar os pobres na linha de frente deu margem à eleição de uma casta de analfabetos políticos e militares subalternos nas câmaras municipais país e não duvido muito que a morte de Ulisses Guimarães foi provocada por uma corrente do PT que colocou no caderno da constituição de 1988 o direito de voto aos militares que pelo movimento democrático afastava os militares do poder desde o início da "abertura democrática".
Os liberais insistem nessa tal de ordem mundial quase que com o mesmo objetivo levando a muitos abestados que concordam com eles ao sacrifício econômico familiar.
Os republicanos enxergam a salvação nos penduricalhos salariais ou melhor "uma pátria morta" que por 30 anos recebe da indústria bélica salário e divisas hierarquicas para ficar carregando ou tomando conta de explosivos gastando dinheiro da tal de União sabe -se lá União de quê!
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