Desde a aprovação da lei que veta candidaturas de gente condenada em
julgamentos colegiados, a Ficha Limpa vem servindo de inspiração a outras
instâncias e já transpôs a fronteira do ambiente eleitoral.
As prefeituras de Minas, São Paulo e Rio já incorporaram a exigência, bem
como o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Nacional de Justiça. A Lei da
Ficha Limpa é um sucesso de crítica e bilheteria.
Muito bom que assim seja. O governo federal, inclusive, se inspirou na
legislação para preparar um decreto a ser editado em breve a fim de estabelecer
uma série de normas nas quais devem se enquadrar os candidatos a cargos
ocupados por meio de indicação.
O texto está em exame na Casa Civil e aguarda assinatura da presidente Dilma
Rousseff para que se faça o anúncio em grande estilo, a fim de demonstrar o
rigor do governo no combate à corrupção.
Excelente que assim seja. Inquietante, contudo, que só agora essa
preocupação com tal tipo de controle de qualidade se manifeste, equivalendo a
uma confissão de que até agora o teor de "ficha" pouco importava.
Espantoso mesmo que o poder público (em todos os âmbitos de todos os matizes
partidários) necessite do respaldo de novas regras para seguir um preceito já
expresso na Constituição.
Em artigo de facílima compreensão. Tão nítido quanto sobejamente ignorado: o
de número 37, cujo mandamento é a obediência aos preceitos da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na administração pública.
Lei complementar (64) de 1990 regulamenta as exigências, detalhando os casos de
impedimento para alguém se tornar um agente público. Está tudo lá devidamente
por escrito. É só seguir. Na teoria há mecanismos de controle à disposição de
quem se propuser a aplicá-los.
O problema é a prática. Ao que se saiba, o Gabinete Institucional da
Presidência da República seria o encarregado de filtrar as indicações aos
postos de livre nomeação do governo.
Mas, se não cumpre essa função, se não é ouvido ou se é desautorizado, se o que
vale é a vontade do padrinho e a conveniência política de quem detém o poder da
palavra final, não será um novo decreto que resolverá a situação.
Para ficar no escândalo mais recente, que motiva a antecipação do decreto,
envolvendo a chefe do escritório paulista da Presidência e o braço direito do
advogado-geral da União. Quem insistiu na indicação do adjunto da AGU, mesmo
com um passivo de processos anteriores? O titular da pasta. E por que
conseguiu? Porque tinha força emanada "de cima".
A determinante aí não foi a norma da boa conduta, mas o preceito do
prestígio sob o aval dos maiorais na hierarquia. Isso vale para o exame dos
pré-requisitos do candidato e para a fiscalização do comportamento no exercício
do cargo. Contra Rosemary Noronha não pesavam acusações formais nem processos.
Para todos os efeitos não estaria enquadrada nos impedimentos legais.
No dia a dia, porém, deslumbrou-se, extrapolou e pelos relatos que fazem
auxiliares e políticos que com ela conviviam, era visível e causava desconforto
a inadequação de seus atos.
Norma alguma será eficaz se não for eficiente sua aplicação e, sobretudo, se
não for genuína a disposição de executá-la. São inúmeros os exemplos.
O da Comissão de Ética Pública é um deles. Seus mandamentos balizam o que é
aceitável ou não por parte das autoridades do primeiro escalão federal, mas na
realidade não valem de nada porque não são levados nem a ferro muito menos a
fogo.
A Lei da Ficha Limpa é uma boa inspiração, mas é preciso que a mão que
balança o adereço queira algo mais que simular empenho na superação de velhos
vícios. Primordial que traduza isso em cada gesto, a fim de não cair no
descrédito. Ou pior: naquele ambiente de trevas repleto de boas intenções.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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