Dos fatos dos últimos dias, podemos selecionar vários que retratam à perfeição
nossos tempos que, na definição de Eduardo Portella, são de "baixa
modernidade". Dois são exemplares, não apenas pelos protagonistas, mas
pela maneira ligeira com que assuntos de Estado são tratados. Não por acaso, o
modo petista de governar está na origem dos dois acontecimentos.
Pela ordem de precedência (pelo menos política) vamos tratar primeiro do
caso envolvendo a chefe de gabinete da Presidência da República em São Paulo,
Rosemary Noronha, apanhada por uma ação da Polícia Federal em diversas
falcatruas, com ramificações em vários órgãos do governo e em agências
reguladoras. Rosemary viajava na comitiva presidencial sempre que a
primeira-dama dona Marisa não estava, todo mundo a conhecia como "a
namorada" do Lula. Com esse título, Rosemary nomeava e demitia, era
pistolão de primeiríssima até mesmo para ministros e autoridades dos diversos
escalões da República.
O que fazem os petistas diante dos fatos que vão se desenrolando dia após
dia no que chamam de mídia? Partem para o ataque, acusando o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso de também ter tido amantes, e até mesmo filho fora do
casamento (que acabou provando-se não ser seu). A "mídia" brasileira
sempre tratou com discrição esse tipo de coisa, e estaria fugindo à regra
somente porque se trata de Lula. Nada mais mentiroso. O que difere o caso de
agora dos anteriores é que Rosemary ocupava um cargo público e nomeava pessoas
para órgãos do governo. A corrupção que vai sendo revelada é apenas
consequência dessa atrofia.
Outro caso: como decorrência do julgamento do mensalão, onde, como se sabe,
figuras graúdas do PT foram condenadas até à prisão, o ministro do Supremo
Tribunal Federal Luiz Fux vem sendo acusado de traição e estaria na lista de
prioridades para vingança dos petistas. Tudo porque teria prometido, ou deixado
subentendido, em encontros com figuras de proa do governo, como o ainda
todo-poderoso José Dirceu, e o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, ambos
já então réus do mensalão, que poderiam contar com seu voto no julgamento. Como
Fux não entregou o que presumidamente prometera, pois acompanhou o voto do
relator Joaquim Barbosa em praticamente todos os casos, estaria no índex
petista.
A primeira observação a fazer é que, a ser verdade, o governo petista
estaria trocando a nomeação para o STF pela garantia de impunidade, o que não é
uma prática possível de ser assumida publicamente, mas explica a ira de quem o
nomeou com essa cabeça torta. O que fez Fux, fustigado pelos ataques anônimos?
Dispôs-se a dar uma entrevista a Mônica Bergamo, da "Folha de S.
Paulo", para contar sua versão dos acontecimentos e esvaziar possíveis
retaliações, até a divulgação de gravação de uma das conversas em que
supostamente vendera sua alma pela nomeação.
A entrevista de Fux pode ter esvaziado um golpe traiçoeiro, mas deixou
cheiro de podre no ar e é desastrosa para ele e o STF. O ministro não apenas
confirmou que teve diversos encontros com pessoas importantes no PT e no seu
entorno, como Delfim Neto, como contou episódios que não são nada abonadores e
podem indicar que trocou votos pela indicação ao STF.
A aproximação com o então ministro da Fazenda Antonio Palocci se deu depois
que Fux votou a favor do governo no Superior Tribunal de Justiça numa disputa
sobre IPI que proporcionou uma economia de 20 bilhões de dólares. "Você
poupar 20 bilhões de dólares para o governo, o governo vai achar você o máximo.
Aí toda vez que concorria, ligava para ele", conta Fux.
Quanto ao apoio de João Pedro Stédile, do MST, ele conta que fez uma mesa de
conciliação no STJ entre o proprietário e os sem-terra de um terreno invadido e
depois pediu a ele para mandar um fax ao Planalto recomendando-o. Diz-se que o
então presidente Lula recusou-se a nomeá-lo com um argumento que tem lá sua
lógica: "Como posso nomear um juiz que é apoiado tanto pelo Delfim como
pelo Stédile?".
Os dois casos mostram o estado das coisas no Brasil, onde a mistura de
público e privado sempre foi o calcanhar de Aquiles do sistema democrático.
Passamos por um retrocesso, voltando a práticas que pareciam superadas e de
exacerbação do patrimonialismo justamente com o PT, que chegou ao poder
supostamente para alterar a maneira de fazer política no país.
Fonte: O Globo
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