Correio Braziliense
No Brasil, o iliberalismo emergiu com a crise
de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou
evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018
A agenda social-liberal está órfã no
Brasil. Foi substituída por um projeto iliberal no mandato de Jair Bolsonaro e
ainda não foi plenamente assumida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
cuja política tem viés nacional-desenvolvimentista, evidente na política
externa e na política industrial. Para neutralizar o iliberalismo, a gestão de
Lula precisaria consolidar outro viés, a de um governo de ampla coalizão
democrática, com uma política de integração competitiva à economia mundial e
agenda social universalista, mas com foco nos mais pobres.
Uma terceira alternativa, com esse caráter
social-liberal, não é possível na atual conjuntura, mesmo que alguns desejem,
por falta lhe uma liderança de projeção nacional e base social articulada. Essa
disputa está se dando dentro do governo Lula e não fora dele.
O que existe de alternativa de poder fora do governo são lideranças que surgiram na aba do chapéu do ex-presidente Jair Bolsonaro, principal representante do iliberalismo na política brasileira, porque sua base eleitoral continua influente, articulada e identificada com uma agenda autoritária. Com a inelegibilidade do ex-presidente da República, sentenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), muitos acreditam que a ameaça à democracia deixou de existir. É um equívoco.
No momento, a mais eloquente demonstração
de que o projeto iliberal não está morto é a questão das escolas
cívico-militares. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), liderou o movimento para manutenção das escolas, depois da
manifestação do Ministério da Educação (MEC), pedagogicamente correta, de que
esse modelo de escola é anacrônico e autoritário.
“Fui aluno de colégio militar e sei da
importância de um ensino de qualidade e como é preciso que a escola transmita
valores corretos para os nossos jovens”, disse o ex-ministro da Infraestrutura
de Bolsonaro. Hoje, há 13 unidades em São Paulo.
Outros doze estados decidiram manter o
modelo, na maioria dos quais Bolsonaro venceu as eleições passadas. Há duas
razões para isso, uma é o comprometimento ideológico com o projeto iliberal,
como fica claro nas declarações do governador paulista; o outro, a pressão da
base eleitoral do ex-chefe do Planalto.
Como na defesa da proibição do aborto, da
posse de armas e da pena de morte, o senso comum leva muitas pessoas a
acreditarem que a formação militar nas escolas com fins civis garantirá o
futuro e a segurança de seus filhos. Quais são os “valores corretos”? Os
professores de nossas escolas públicas não têm esses valores? É preciso a
presença de ex-militares nas salas de aula para isso? O principal problema da
qualidade das escolas públicas são a falta de recursos e a desvalorização dos
professores, de abertura para novos conceitos pedagógicos.
Modernidade líquida
O iliberalismo no Brasil não é um projeto
político descolado da nossa realidade e do mundo. A revolução digital, a crise
de representação dos partidos e as mudanças nos costumes, com o fim da antiga “sociedade
industrial”, estruturada em classes sociais definidas, geram muita perplexidade
e insegurança na sociedade. Na chamada “modernidade líquida”, conceito do
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, principal característica de nossa época, as
relações sociais, econômicas e de produção são “frágeis, fugazes e maleáveis,
como os líquidos”.
O iliberalismo é uma das faces políticas
dessa nova sociedade. Na “modernidade líquida”, o indivíduo molda a sociedade à
sua personalidade, por seu estilo de vida, padrão de consumo e comportamento. A
mobilidade geográfica é muito maior, as migrações ocorrem por necessidade ou
oportunidade, a competição econômica aumenta, os salários diminuem, o emprego é
inseguro, novas profissões surgem e muitas desaparecem. Uma pessoa ter o mesmo
emprego por toda a vida é quase impossível, exceto para funcionários públicos
de carreira. E aí que surge o reacionarismo, o desejo de voltar a um passado
idealizado, imaginário, para ter mais segurança.
E o projeto iliberal? Esse conceito surgiu
para caracterizar os movimentos e os partidos que combatem a democracia por
dentro. Ganhou muita força no Ocidente durante o governo de Donald Trump,
porque chegou ao poder nos Estados Unidos. O que separa a democracia liberal do
iliberalismo é a falta de respeito pelas instituições independentes e pelos
direitos individuais, principalmente.
No Brasil, o iliberalismo emergiu com a
crise de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou
evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018.
Em todo o mundo, lideranças iliberais combatem os valores democráticos,
disputam o poder dentro das regras do jogo e, quando vitoriosos, atuam contra
as instituições democráticas. É o que ocorre na Hungria, na Rússia e na Turquia;
mais recentemente, na Itália e na Espanha. E foi o que assistimos nos quatro
anos de governo Bolsonaro.
A expressão “democracia iliberal”
(“illiberal democracy”, em inglês) apareceu pela primeira vez em 1997, em um
ensaio publicado na revista “Foreign Affairs” pelo jornalista e cientista
político americano Farred Zakaria, um crítico da cultura de cancelamento na
esquerda.
No ensaio, Zakaria chamou de democracias
iliberais os “regimes democraticamente eleitos e com frequência reeleitos ou
mantidos no poder por meio de plebiscitos, que ignoram que seus poderes são
limitados constitucionalmente e que destituem seus cidadãos de seus direitos e
liberdades básicos”.
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