Correio Braziliense
Conflitos na Ucrânia, na Palestina e a
escalada militar entre Tel Aviv e Teerã, com envolvimento dos Estados Unidos,
mudaram os paradigmas de defesa contemporâneos
Com proclamações de vitória de todos os envolvidos, inclusive do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a trégua entre Israel e Irã se manteve durante todo o dia de ontem, apesar das acusações mútuas de que, na segunda-feira, houve violações de parte a parte. O presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, e o comandante das Forças de Defesa de Israel (IDF), general Eyal Zamir, reconheceram publicamente o acordo imposto pela Casa Branca, depois de um alerta de Trump contra novos ataques de Israel contra o Irã, que ameaçava revidar com novos mísseis e drones. A trégua não incluiu, porém, as operações de Israel em Gaza, que massacram a população civil, ao combater o Hamas. Os palestinos estão órfãos.
Na guerra de versões, o primeiro-ministro
israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que Israel alcançou uma “vitória
histórica” após 12 dias de conflito, mas que ainda precisa concluir sua
campanha contra o “eixo do Irã” — derrotar o Hamas e garantir o retorno dos
reféns em Gaza. Do lado do Irã, Pezeshkian também classificou o desfecho como
uma “grande vitória” para Teerã. “O Irã retaliou oficialmente à nossa
destruição de suas instalações nucleares com uma reação muito fraca, o que
esperávamos e que combatemos com muita eficácia”, disse Trump, na rede Truth
Social, após se reunir com o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.
A trégua é frágil. Há muitas dúvidas sobre a
real situação do programa nuclear iraniano, principalmente o destino do estoque
de urânio enriquecido. Ainda não estão estabelecidas as condições para uma paz
duradoura. Segundo analistas norte-americanos, o fornecimento de eletricidade e
parte do maquinário foram danificados, mas a estrutura física das instalações
subterrâneas não foi completamente destruída. O secretário de Defesa dos
Estados Unidos, Peter Hegseth, porém, garante que o ataque ordenado por Trump
“foi concluído com sucesso” — ou seja, o programa nuclear iraniano foi
devastado.
A trégua será submetida a um teste de verdade
quando o mistério sobre o estoque de urânio enriquecido do Irã tiver que ser
esclarecido. Segundo o The New York Times, fontes da inteligência americana
afirmam que parte desse material pode ter sido transferida para instalações
secretas de enriquecimento, fora do alcance das bombas. O ataque dos EUA contra
instalações do Irã, no sábado, atrasou o programa nuclear do país “em apenas
alguns meses’, segundo o jornal. O pretexto para os ataques foi a suposta ameaça
de produção de uma arma nuclear no prazo de apenas três meses.
Segundo a Agência de Inteligência de Defesa
(DIA, na sigla em inglês), os ataques selaram as entradas de dois dos três
locais atingidos — Fordow, Natanz e Isfahan —, mas não chegaram a colapsar suas
estruturas subterrâneas. Israel trata o programa nuclear iraniano como uma
ameaça existencial. Trump garante que o Irã “jamais reconstruirá suas
capacidades nucleares”. Signatário do acordo de não-proliferação de armas
nucleares, o Irã tem direito a desenvolver um programa nuclear com fins
pacíficos, mas Israel não admite essa possibilidade, embora tenha armamento
nuclear e não faça parte do acordo, como o Paquistão e a Coreia de Norte.
Novos paradigmas
Israel anunciou que concordou com a proposta
de cessar-fogo após “atingir os objetivos” de seus ataques ao Irã, ao infligir
danos severos à liderança militar, entre os quais centenas de agentes Basij, a
milícia iraniana, e matar outro cientista nuclear sênior. “Israel agradece ao
presidente Trump e aos EUA por seu apoio à defesa e sua participação na
eliminação da ameaça nuclear iraniana”, diz o comunicado.
Leia mais: Incertezas
envolvem o destino do programa nuclear do Irã
Em grande inferioridade aérea, o Irã fez o
que pode para obter o cessar fogo, inclusive avisar aos EUA, com antecedência,
que lançaria misseis em retaliação aos ataques norte-americanos às usinas
nucleares. O ministro de Relações Exteriores do Catar, Seyed Abbas Araghchi,
negociou o acordo. O emirado abriga a principal base militar norte-americana no
Oriente Médio, que foi bombardeada cenograficamente pelo Irã.
Trump considera o cessar-fogo uma grande
vitória diplomática dos EUA — um deputado republicano até propôs o nome do
presidente para o Prêmio Nobel da Paz. Entretanto, a geopolítica mundial já
estava abalada pelas guerras da Ucrânia e de Gaza, e nunca mais será a mesma.
Depois dos ataques dos EUA ao Irã, houve mudanças de paradigmas diplomáticos, a
partir da ideia de Trump de que a paz somente será alcançada pela força, e de
novas estratégias militares, em razão da guerra cibernética, aviação não
tripulada e artilharia de alta precisão, combinada à guerra assimétrica e
atuação dos serviços de inteligência para eliminar fisicamente cientistas e
chefes militares.
Para alguns, uma nova ordem internacional se
impõe, em termos econômicos, políticos e militares. As guerras na Ucrânia, em
Gaza e a escalada militar entre Irã e Israel, com envolvimento dos EUA, mudaram
os paradigmas de defesa contemporâneos. Refletem transformações tecnológicas,
geopolíticas e doutrinárias, e reconfiguram a forma como os Estados pensam e
conduzem a guerra no século XXI. O uso maciço de drones e de inteligência
artificial, e o papel estratégico da cibernética, tornaram obsoletos conceitos
de dissuasão clássicos, como guarnição de fronteiras e profundidade de
território. Há guerras por procuração, urbanas, subterrâneas, de atrito e
prolongadas.
Tudo isso precipita uma nova guerra fria, com
o rearmamento acelerado da Europa contra velhos inimigos, como a Rússia, a
Turquia e o Irã. Será inevitável a projeção de poder naval e aéreo da China,
potência continental emergente, que estava quieta no seu canto.
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