domingo, 9 de janeiro de 2011

O correr da vida... :: Pedro S. Malan

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não pude assistir, mas li com atenção o importante discurso de posse de nossa nova presidente. Importante porque foi o primeiro desde o discurso lido na noite de sua vitória nas urnas. Importante porque a presidente assumiu compromissos para os próximos quatro anos. Importante porque a presidente disse ali coisas que não dissera tão explicitamente durante a campanha eleitoral.

Acho que o discurso deve ser levado a sério. Afinal, não é mais um dos milhares de improvisos, "sueltos y salidas" do ex-presidente, que nos acostumamos a ouvir com talvez excessiva condescendência e bonomia ao longo dos últimos oito anos. A nova presidente apresentou-se não como chefe de facção política (afinal, cerca de 50 milhões de pessoas ou nela não votaram, ou votaram em branco, ou anularam seus votos), mas como presidente de todos os brasileiros.

E anunciou compromissos firmes para o futuro, alguns dos quais merecem ser lidos, relidos e cobrados, ao longo dos próximos quatro anos (alguns mencionados abaixo). E há alguns parágrafos importantes explicitando algo que não poderia ser dito dessa forma na campanha e de profundas implicações para nosso futuro. Disse a presidente: ""O Brasil optou, ao longo de sua História, por construir um Estado provedor de serviços básicos e de Previdência Social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade."" Preço a pagar pela ""garantia do alento da aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação universais"".

A propósito, vale a pena acompanhar mais de perto a crucial discussão do momento em muitos países europeus. Como notou Ken Rogoff: ""Nenhum fator de risco é mais perigoso para uma moeda do que a recusa a enfrentar a realidades fiscais."" A nossa presidente dá a entender que não pretende recusar-se a enfrentar as nossas flagrantes realidades e irrealidades fiscais ao falar em fazer mais - e melhor - com os recursos existentes, controlar a velocidade de crescimento dos gastos governamentais e mudar sua composição em favor do investimento.

Desejo boa sorte à nossa presidente ao lidar com a voracidade de sua "base de sustentação política" - tanto no Congresso como na sociedade, à luz das expectativas geradas desde o início de 2006, quando teria ocorrido uma inflexão "histórica" na direção do "novo desenvolvimentismo". O que um importante ministro de Estado à época (hoje governador) chamou publicamente de ""o fim da era Palocci na economia"". O ex-presidente Lula pediu-lhe que maneirasse, mas o fato é que essa é a visão de parte importante do seu partido, que acha que a atual presidente recebeu das urnas um mandato para dar continuidade à política econômica pós-2006 na área fiscal e no papel de um "Estado provedor" redefinido. (Ver o interessante artigo de Amir Khair Mudanças na política econômica, publicado neste jornal em 28/11/2010.)

Mas a presidente eleita não deixou margem a nenhuma dúvida em seu discurso de posse: "Já faz parte de nossa cultura recente a convicção de que a inflação desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador. Não permitiremos, sob nenhuma hipótese, que esta prática volte a corroer nosso tecido econômico e a castigar as famílias mais pobres."

Implícito nesse parágrafo está o reconhecimento de que a "nossa cultura recente" é uma cultura que só foi possível graças ao Real. Um programa de estabilização, vale lembrar (quando se lê um parágrafo como o acima), ao qual o PT se opôs à época, considerando-o um pesadelo, algo que não duraria mais que alguns meses, uma simples tentativa de "estelionato eleitoral".

Pois bem, em 1.º de março de 2011 teremos 17 anos de inflação sob controle. Tem razão, pois, a nossa presidente ao afirmar ainda em seu discurso de posse: "Um governo se alicerça no acúmulo de conquistas realizadas ao longo da História. Ele sempre será, ao seu tempo, mudança e continuidade. Por isso, ao saudar os extraordinários avanços recentes, é justo lembrar que muitos, a seu tempo e a seu modo, deram grandes contribuições às conquistas do Brasil de hoje."

Um reconhecimento que seu antecessor no cargo nunca teve a generosidade política de fazer, ao contrário, preferindo sempre a ladainha do "nunca antes" - de um país que teria começado a ser construído a partir de 2003, com sua chegada ao poder. Na verdade, Lula jamais reconheceu tampouco o fato irretorquível de que o Brasil, durante os anos de seu governo, se beneficiou enormemente de uma situação econômica internacional que, para nós, foi extraordinariamente favorável, exceto por um breve período de fins de 2008-início de 2009.

A nossa presidente, pelo menos, reconhece que fatos não deixam de existir porque são ignorados, ou que é muito difícil a um político, porque popular, reescrever a História de um país complexo como o Brasil à luz de seus interesse eleitorais: "É importante lembrar que o destino de um país não se resume à ação de seu governo."

Mas o que importa agora é o olhar à frente. O discurso de posse da nova presidente - se levado à sério, como, obviamente, deve ser - contém compromissos importantes a serem cobrados. Menciono dois, em particular: "Eu e meu vice Michel Temer fomos eleitos por uma ampla coligação partidária. Estamos construindo com eles um governo onde capacidade profissional, liderança e a disposição de servir ao País serão os critérios fundamentais." E "serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para aturem com firmeza e autonomia".

Mas, como escreveu mestre Guimarães Rosa no início da belíssima citação com a qual a nova presidente conclui seu discurso: "O correr da vida embrulha tudo..."

Economista, foi Ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso

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