DEU NO VALOR ECONÔMICO
Com suas ruas emudecidas, a sociedade prepara-se para revisitar o nosso abominável mundo velho
Não está fácil compreender o que anda se passando. Se em 2002, após a vitória eleitoral de Lula, houve quem a recebesse como uma queda da Bastilha, o que era um exagero, perdoável em jovens militantes intelectuais do PT, se vier mais uma vitória agora em 2010, qualquer tentativa de interpretá-la em chave grandiloquente é puro disparate. Nada vai cair, ao contrário, tudo que aí está vai se consolidar e mesmo se aprofundar. Não há paixões soltas nas ruas e nem debates acalorados entre os principais candidatos à sucessão presidencial que desfilam, em tom monocórdico, na TV e nas emissoras radiofônicas seus pontos programáticos em matérias de educação, saúde e segurança, obedientes à pauta que lhes empurram os seus especialistas em marketing eleitoral. Os dois principais candidatos oposicionistas sequer sugerem uma ameaça efetiva às linhas principais do governo e têm declarado em alto e bom som que serão, no fundamental, contínuos a elas.
Tudo isso, mais o fato de tanto Serra como Dilma serem personagens avessos a histrionismos carismáticos, com perfis políticos forjados em temas técnicos da economia e da administração pública, seriam indicações de que há algo de impostado nas manifestações exaltadas das hostes situacionistas, especialmente do presidente de honra do PT e da República, como se esta sucessão importasse um confronto dramático entre duas concepções do mundo. E a partir de considerações desse tipo, a análise chega ao território das coisas indemonstráveis, porque não se pode deixar de cogitar que é Lula, e não Dilma, o candidato às próximas sucessões, agora em 2010, por interposta pessoa, e nas vindouras em carne e osso. E se assim for, o cenário real em que se deve travar a disputa eleitoral não pode ser o do trinômio saúde, educação e segurança, nem o da questão social em geral. Sob esse véu das promessas compadecidas, o que rolaria, de verdade, seria um projeto de poder e de acumulação de mais poder.
A hipótese, vista ao lado de uma série de outros indicadores, não é para ser negligenciada, especialmente quando se considera, no caso de vitória de Dilma, a possibilidade de uma convocação de uma assembleia constituinte, mesmo que de poderes limitados para fins de reformas pontuais, como a tributária e a política. Não se põe de volta ao tubo a pasta de dentes que se extraiu dele. Na eventualidade, toda a obra da Carta de 1988 estará sob risco, em particular o regime de freios e contrapesos que ela criou para impedir a tirania de maiorias eventuais, e sabe-se lá qual modelo de democracia participativa vingaria com a vida associativa, inclusive os sindicatos, vinculada como está às agências estatais.
A ficar com as imagens da Revolução Francesa, são as do 18 Brumário de que estamos mais próximos, quando a nação francesa ao invés de seguir em frente com sua experiência republicana, temerosa dos setores populares, fez a opção de se voltar para o seu passado, retomando, em uma sociedade já prosaicamente burguesa, o mito napoleônico. Aqui, ao que parece, teríamos também um encontro marcado com o nosso passado, com a ressurgência do mito de Vargas, embora, é claro, estejamos em uma cena já esvaziada da carga dramática das lutas anti-imperialistas dos anos 1950 e diligentemente empenhados no aprofundamento da experiência capitalista brasileira sem os obstáculos, externos e internos, que Vargas conheceu e que levaram ao desfecho trágico do seu governo. Melancolicamente, esse "revival" do varguismo não se esquece de recordar o papel de pai dos pobres que lhe colou em sua campanha presidencial largamente vitoriosa; Vargas que, em suas últimas palavras, conclamava a mobilização popular em defesa do seu legado.
Mas por que essa viagem de volta na história, se há e havia um caminho promissor rumo ao futuro, na esteira do movimento de emergência popular, que, com inícios na resistência ao regime autoritário, se espraiou nas décadas seguintes com a conquista da Constituinte, no impeachment de Collor, e na vitória do PT na sucessão de 2002? Por que se retornou ao anacrônico dilema, opondo a democracia formal à substantiva, que grassa em surdina em certos círculos do poder? As respostas podem ser muitas, mas qualquer delas será falsa se não admitir que o princípio em vigência é o de acumular poder pelo poder. E para quem está à testa do Estado, em especial com as tradições de estadofilia que nos caracterizam, por que não fazer dele o centro estratégico da sua política?
Retorna-se, então, e agora com um mito vivo, ao modelo da modernização, aos seus ícones intelectuais e ao tema do nacional-desenvolvimentismo. Como no Império, findo o tempo em que a sociedade, no período regencial, ganhou alguma autonomia diante do seu aparato burocrático, podemos constatar que o Regresso, assim em maiúsculas, como se dizia em meados do século XIX, abre caminho, restaurando a majestade do Estado. A sociedade regride ao aceitar passivamente a verticalização a que estão sujeitas as questões que lhe dizem respeito, abdica do moderno, da autonomia de suas organizações, e até parece indiferente ao fato de as oligarquias tradicionais mais recessivas e cúpidas estarem instaladas nos postos de mando. Pachorrentamente, docemente resignada, com suas ruas emudecidas, a sociedade se prepara para revisitar o nosso abominável mundo velho.
Com suas ruas emudecidas, a sociedade prepara-se para revisitar o nosso abominável mundo velho
Não está fácil compreender o que anda se passando. Se em 2002, após a vitória eleitoral de Lula, houve quem a recebesse como uma queda da Bastilha, o que era um exagero, perdoável em jovens militantes intelectuais do PT, se vier mais uma vitória agora em 2010, qualquer tentativa de interpretá-la em chave grandiloquente é puro disparate. Nada vai cair, ao contrário, tudo que aí está vai se consolidar e mesmo se aprofundar. Não há paixões soltas nas ruas e nem debates acalorados entre os principais candidatos à sucessão presidencial que desfilam, em tom monocórdico, na TV e nas emissoras radiofônicas seus pontos programáticos em matérias de educação, saúde e segurança, obedientes à pauta que lhes empurram os seus especialistas em marketing eleitoral. Os dois principais candidatos oposicionistas sequer sugerem uma ameaça efetiva às linhas principais do governo e têm declarado em alto e bom som que serão, no fundamental, contínuos a elas.
Tudo isso, mais o fato de tanto Serra como Dilma serem personagens avessos a histrionismos carismáticos, com perfis políticos forjados em temas técnicos da economia e da administração pública, seriam indicações de que há algo de impostado nas manifestações exaltadas das hostes situacionistas, especialmente do presidente de honra do PT e da República, como se esta sucessão importasse um confronto dramático entre duas concepções do mundo. E a partir de considerações desse tipo, a análise chega ao território das coisas indemonstráveis, porque não se pode deixar de cogitar que é Lula, e não Dilma, o candidato às próximas sucessões, agora em 2010, por interposta pessoa, e nas vindouras em carne e osso. E se assim for, o cenário real em que se deve travar a disputa eleitoral não pode ser o do trinômio saúde, educação e segurança, nem o da questão social em geral. Sob esse véu das promessas compadecidas, o que rolaria, de verdade, seria um projeto de poder e de acumulação de mais poder.
A hipótese, vista ao lado de uma série de outros indicadores, não é para ser negligenciada, especialmente quando se considera, no caso de vitória de Dilma, a possibilidade de uma convocação de uma assembleia constituinte, mesmo que de poderes limitados para fins de reformas pontuais, como a tributária e a política. Não se põe de volta ao tubo a pasta de dentes que se extraiu dele. Na eventualidade, toda a obra da Carta de 1988 estará sob risco, em particular o regime de freios e contrapesos que ela criou para impedir a tirania de maiorias eventuais, e sabe-se lá qual modelo de democracia participativa vingaria com a vida associativa, inclusive os sindicatos, vinculada como está às agências estatais.
A ficar com as imagens da Revolução Francesa, são as do 18 Brumário de que estamos mais próximos, quando a nação francesa ao invés de seguir em frente com sua experiência republicana, temerosa dos setores populares, fez a opção de se voltar para o seu passado, retomando, em uma sociedade já prosaicamente burguesa, o mito napoleônico. Aqui, ao que parece, teríamos também um encontro marcado com o nosso passado, com a ressurgência do mito de Vargas, embora, é claro, estejamos em uma cena já esvaziada da carga dramática das lutas anti-imperialistas dos anos 1950 e diligentemente empenhados no aprofundamento da experiência capitalista brasileira sem os obstáculos, externos e internos, que Vargas conheceu e que levaram ao desfecho trágico do seu governo. Melancolicamente, esse "revival" do varguismo não se esquece de recordar o papel de pai dos pobres que lhe colou em sua campanha presidencial largamente vitoriosa; Vargas que, em suas últimas palavras, conclamava a mobilização popular em defesa do seu legado.
Mas por que essa viagem de volta na história, se há e havia um caminho promissor rumo ao futuro, na esteira do movimento de emergência popular, que, com inícios na resistência ao regime autoritário, se espraiou nas décadas seguintes com a conquista da Constituinte, no impeachment de Collor, e na vitória do PT na sucessão de 2002? Por que se retornou ao anacrônico dilema, opondo a democracia formal à substantiva, que grassa em surdina em certos círculos do poder? As respostas podem ser muitas, mas qualquer delas será falsa se não admitir que o princípio em vigência é o de acumular poder pelo poder. E para quem está à testa do Estado, em especial com as tradições de estadofilia que nos caracterizam, por que não fazer dele o centro estratégico da sua política?
Retorna-se, então, e agora com um mito vivo, ao modelo da modernização, aos seus ícones intelectuais e ao tema do nacional-desenvolvimentismo. Como no Império, findo o tempo em que a sociedade, no período regencial, ganhou alguma autonomia diante do seu aparato burocrático, podemos constatar que o Regresso, assim em maiúsculas, como se dizia em meados do século XIX, abre caminho, restaurando a majestade do Estado. A sociedade regride ao aceitar passivamente a verticalização a que estão sujeitas as questões que lhe dizem respeito, abdica do moderno, da autonomia de suas organizações, e até parece indiferente ao fato de as oligarquias tradicionais mais recessivas e cúpidas estarem instaladas nos postos de mando. Pachorrentamente, docemente resignada, com suas ruas emudecidas, a sociedade se prepara para revisitar o nosso abominável mundo velho.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu conselho institucional. Escreve às segundas-feiras
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