Os dois primeiros anos do governo Lula foram especialmente difíceis para o conjunto de forças que o apoiavam, em particular os sindicatos, à medida que significaram uma evidente continuidade com os rumos macroeconômicos da administração que sucedia, denunciada como nociva aos trabalhadores pelo PT, quando exercia o papel de principal partido da oposição. Esses foram tempos de silêncio do mundo sindical, embora tenham assistido a uma expressiva ocupação por parte de sindicalistas de posições no interior da máquina estatal, algumas delas de importância estratégica. De fato, por fas ou por nefas, a política econômica do ciclo PSDB/PT não foi contestada pelo sindicalismo nos oito anos do governo Lula.
Um indicador dessa espécie de concordata implícita entre governo e sindicatos está na radical queda das ações de contestação junto ao Judiciário de medidas legislativas de iniciativa governamental - de passagem, registre-se que esse foi um tempo em que se produziram várias leis favoráveis aos trabalhadores - para não se mencionar a baixa incidência de greves durante o período.
Havia, contudo, uma pedra no caminho: o PT, desde suas origens no movimento sindical do ABC, mantinha uma posição doutrinária adversa à legislação da era Vargas, que o levava a questionar durante dois dos seus pilares: o sindicato único por categoria e o chamado imposto sindical, que, em sua avaliação, obstaculizavam o caminho para a conquista de um sindicalismo efetivamente livre de vínculos com o Estado e representativo da vontade do seu corpo associativo. Com efeito, em 2004, fiel a essa política, o governo convoca um amplo Fórum Sindical com a proposta de converter seu programa sindical em realidade.
Atual contencioso é uma questão política
Tal proposta, diante de uma cerrada oposição de outras correntes do sindicalismo, foi retirada, e, mais que isso, a antiga formatação da CLT se faz ampliar com a incorporação a ela das centrais sindicais, que, além de legitimadas pela legislação, passam a receber uma parcela do que for arrecadado pelo imposto sindical. Os vértices sindicais ganham, assim, maior autonomia operacional e recursos próprios para a sustentação de suas atividades, reforçados por sua inscrição no interior do governo e das agências estatais. Doutrinariamente unido em torno do modelo da CLT, de certo modo o sindicalismo é governo nos mandatos de Lula, e o será em escala inédita na nossa história republicana.
Daí que o atual contencioso entre as centrais sindicais e o governo Dilma extravasa o campo prosaico das demandas salariais e se torna uma questão caracteristicamente política, uma vez que ameaça afetar o seu programa de governo a partir da sua própria estrutura interna. Substantivamente, põe sob risco sua orientação de promover uma gestão sob a bandeira da racionalização da administração e da economia em nome de suas políticas sociais e de expansão das atividades produtivas. De outra parte, a conjuntura sindical se encontra informada por variáveis favoráveis ao mundo do trabalho que repercutem positivamente em sua capacidade de organização, ao contrário do que ocorria, poucos anos atrás, quando conspiravam contra ele tanto a reestruturação do sistema produtivo quanto o baixo crescimento da economia.
Oportuna e bem documentada matéria do Valor (19/1/2011) demonstra que, nos últimos cinco anos, houve um aumento expressivo da massa salarial, registrando-se um salto entre 2009 e 2010 da ordem de 7,6%. A mesma matéria, analisando os reajustes salariais de quatro estratégicas categorias de trabalhadores (bancários, químicos, metalúrgicos de montadoras e petroleiros), no curso dos anos de 2000 a 2010, exibe dados em que se constatam ganhos salariais bem acima da inflação, em particular, em duas categorias, tradicionalmente bem organizadas.
Ainda tateantes, se esboçam, a partir da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, novas relações entre governo e sindicatos que, no caso, tendem a evocar os anos de governo João Goulart, quando as centrais pretendiam exercer poder de veto quanto a iniciativas governamentais que não contassem com sua prévia aprovação. Dilma estaria contrariando o estilo de Lula, que não as levava a público antes de torná-las minimamente consensuais entre suas forças principais de sustentação. No caso, para além da questão salarial, as centrais parecem que se insurgem - talvez principalmente - contra o fechamento dos canais de negociação que Lula mantinha com elas (ver "Boletim Eletrônico da Agência Sindical" de 20/1/2011).
O tema recente da elevação da taxa de juros por decisão do Banco Central sinaliza para a mesma direção. Sobre esse tema sensível, nota dada a público pela Força Sindical não foge das palavras fortes: "É incrível, mas parece que o governo que inicia quer implantar a agenda econômica que foi derrotada nas últimas eleições por privilegiar o capital especulativo" (o mesmo Boletim, 21/1/2011). O argumento, como se sabe, é puramente retórico: o candidato Serra sempre se mostrou inequivocamente contrário à política de juros do Banco Central.
As centrais, na verdade, estão é declarando em alto e bom som que ou são reinstaladas no governo pela presidente Dilma, como Lula parecia anuir ou lhes fazia imaginar, ou vão fazer política no Parlamento, nas ruas e nos sindicatos. Como disse um sindicalista, em frase pouco enigmática, "que recomeçou, recomeçou".
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
Nenhum comentário:
Postar um comentário