Em economia, subentende-se que o acesso de uma pessoa aos bens e serviços materiais depende de sua renda pessoal e da quantidade e qualidade das políticas públicas, desde as estritamente sociais àquelas ligadas à fruição da cidadania.
A forma como se reparte a população por níveis de renda é a aproximação feita pela economia para ilustrar, sinteticamente, as desigualdades de padrão de vida. Entretanto, e mais além do poder de compra da renda pessoal, a qualidade de vida é afetada pelas regras de conviviabilidade e desenho institucional a respeito dos padrões comportamentais da população. O acesso às praias serve de ilustração.
A instituição portuguesa das terras de marinha - propriedade eternamente pública das terras lindeiras a tantas braças do preamar -, transplantada para o Brasil, garante livre acesso à orla marítima. Na Espanha, não houve essa instituição, e nos vizinhos hispano-americanos há a praia vedada, ou seja, aonde é impedido o livre acesso. A possibilidade do banho de mar é, no Brasil, garantida pela ordem jurídica, porém o acesso aos não moradores, vizinhos às praias, pode ser dificultado pela ausência de transporte.
Lembro-me de um governante do Rio de Janeiro que ficou surpreso ao constatar, por uma pesquisa, que seu gesto de estabelecer linhas de ônibus dos subúrbios às praias oceânicas era permanente na memória do povão, e considerado uma prova de respeito. Lembro-me, também, do sucesso da piscinas marítimas (piscinões) na Praia de Ramos e em São Gonçalo. Sei da tristeza dos moradores no interior do bairro da Ilha do Governador, quando associações de moradores dos vizinhos das praias conseguiram impedir a construção de outro piscinão.
Além da má distribuição de renda, há um esforço para "vedar" o povão de suas paixões e aumentar frustrações
Entretanto, com frequência, em vez de melhorar a qualidade de vida do povão, os governantes fazem o contrário. O povo cria um padrão de comportamento inovador, que lhe dá felicidade; gera inveja e interesses pecuniários associados que expulsam o povão ou dificultam a reprodução daquele padrão.
A escola de samba do carnaval abria a possibilidade mágica da transmutação do popular, ao vestir fantasia e desfilar para o público. Com a evolução do negócio do carnaval, a fantasia está longe do homem do povo. Aliás, surgiu o "dono de ala", que se responsabiliza em conseguir algumas dezenas de figurantes e, comercializando o lugar na ala, ganha do candidato uma importância em dinheiro. Agências de turismo vendem lugares a quem jamais sambou, mas quer contar para os amigos - ou futuramente para os netos - que desfilou no Sambódromo.
Existem chefes de alas que contratam com diversas escolas e oferecem um cardápio de fantasias a turistas candidatos. Hoje, o popular que samba depende de ser inserido numa "ala da comunidade", claramente minoritárias entre os milhares de não sambistas desfilantes. Nas arquibancadas, o preço de admissão vai expulsando o popular de baixa renda. A resposta do povo carioca foi prestigiar as escolas fora do Grupo Especial e fazer renascer os blocos de bairros. No carnaval passado, o Cordão do Bola Preta mobilizou 500 mil aderentes.
Agora, está sob ameaça outra das criações apaixonadas do povão brasileiro. A Fifa, com suas regras e o servilismo nacional, está "gentrificando" o futebol. As torcidas vão sendo desapropriadas de seu estilo de torcer. Creio que o povão brasileiro redefiniu, radicalmente, o football. Nelson Rodrigues disse que no football clássico inglês o jogador expulsa a bola, enquanto que no futebol brasileiro, o jogador buscou dominar a bola. Um jogo aristocrático, que apaixonou o nosso povão pois é barata a sua iniciação.
A bola pode ser improvisada, o campo pode ser um terreno baldio e, no limite, até mesmo um declive. As marcas de gol podem ser pedaços de pedra e é autorizado, na pelada de várzea, jogar com pés descalços e organizar o jogo com e sem camisa. A linha de passe aperfeiçoa o domínio da bola. Das micro torcidas locais, a paixão gerou a torcida dos clubes, a adesão irrestrita ao grande time e, nos campeonatos com outros países, a pátria se veste de verde e amarelo. Para minha surpresa, está organizada a Frente Nacional de Torcedores que, no limite, no final de um grande campeonato internacional terá algo como todo o povo brasileiro menos os recém-nascidos e os excêntricos.
O pequeno estádio evoluiu arquitetônica e operacionalmente para os grandes Pacaembu e São Januário, porém quando a Fifa decidiu fazer a Copa do Mundo de 1950 no Brasil foi construído o Maracanã. A partir do fiasco de 16 de julho, o "Maraca" foi consagrado como o templo máximo da paixão brasileira pelo futebol. Seu coração sempre esteve na geral, aonde o povão de fé vivia a sensação de estar unido aos torcedores do seu clube, sendo um só com a multidão, que vibrava a mesma voz. A geral foi mutilada a partir de 2005, com a restrição da Fifa ao torcedor em pé. Com isso foi reduzida a presença na geral, porém o torcedor ficou em cima da cadeira. Agora, sob o argumento de que a Fifa exige proteção climática com sombreamento e evolução para a "climatização"(!), o Rio irá gastar mais de R$ 1 bilhão para reduzir a apenas 76 mil o público que, no passado, chegou a 200 mil pessoas. A elitização pretende converter o templo da paixão em um teatro que apresenta a ópera futebolística. Obviamente, o custo de admissão vai expelir o povão do "Maraca".
A demolição da marquise do Maracanã e sua substituição por uma lona é uma violenta agressão arquitetônica a um totem brasileiro. Por que não utilizar o Engenhão até a recuperação da marquise? Além do domínio da bola, o brasileiro criou a emoção da festa de torcida. Por que uma política pública se dedica a expelir o povão de seu templo e anular um componente de felicidade? À má distribuição de renda pessoal, parece haver um esforço para "vedar" o povão às suas paixões e aumentar as frustrações.
Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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