Piero Fassino
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil
Tradução: A. Veiga Fialho
Nestes vinte e cinco anos que nos separam do trágico desaparecimento de Enrico Berlinguer, tudo mudou em torno de nós. O mundo, a Europa, a Itália conheceram transformações enormes que nos trazem um cenário inteiramente diferente daquele em que o mais amado secretário do PCI viveu seu extraordinário percurso político e humano.
E no entanto voltar a refletir sobre a ação e o pensamento de um dos dirigentes que mais marcaram a história da esquerda e da democracia italiana é ainda mais útil, porque o nosso tempo nos traz temas sobre os quais Berlinguer teve intuições preciosas e precoces. Quando o secretário do PCI falou de “austeridade”, não havia na nossa linguagem esta outra palavra com a mesma terminação — “sustentabilidade” —, que se tornou hoje de uso cotidiano.
Era a metade dos anos 1970, o tempo da primeira grande crise do petróleo, que levava os países produtores de petróleo a reivindicar uma mudança dos termos de troca e das relações de mercado e de investimento com os países industrializados e consumidores. Muitos consideraram, naquele momento, a austeridade berlingueriana com desconfiança, quase como se fosse uma forma de rejeição da modernidade. Na realidade, Berlinguer compreendeu muito antes do que os outros que uma concepção do desenvolvimento unicamente como ininterrupta produção de bens e de mercadorias está destinada a chocar-se com os limites intransponíveis da natureza e do destino humano. E que fundamentar o desenvolvimento em bases sustentáveis — demográficas, ambientais, sociais — é condição para que o crescimento seja capaz de produzir benefícios dos quais possa desfrutar uma vasta humanidade, sem prejudicar as oportunidades e o destino das gerações futuras.
“Governo mundial” foi outra expressão original que Berlinguer cunhou, querendo sublinhar o desgaste do sistema bipolar e a necessidade de um novo equilíbrio político do planeta, não mais governável com base nas relações de choque, competição ou confronto entre URSS e Estados Unidos.
Mesmo tal expressão podia parecer utópica — e não faltou quem acusasse o líder do PCI de abstrações e visões cheias de veleidade —, quando, ao contrário, Berlinguer antecipava assim um tema que hoje a crise da globalização nos coloca de modo incisivo: a necessidade de uma governance global e de um multipolarismo responsável diante de um mundo cada vez mais único e interdependente, que não pode ser sustentado só pelas soberanias nacionais e suas mútuas relações.
É ainda uma das afirmações mais conhecidas e fortes de Berlinguer — a “democracia como valor universal” — que se mostra hoje vigorosamente atual.
Se, no passado, tal afirmação tinha o significado forte e explícito de contestar o comunismo soviético e seu caráter opressivo, hoje a “questão democrática” revela-se de extraordinária atualidade, numa sociedade em que os poderes das nações se esvaziam, os cidadãos sentem como mais incertos os seus direitos, a política e as instituições surgem fracas e inadequadas, e, até mesmo, crescente é o deslocamento de poderes, decisões, recursos: de instituições legitimadas pelos cidadãos — “democráticas”, precisamente — para lugares e instâncias extrainstitucionais, ao mesmo tempo que se afirmam concepções populistas e plebiscitárias da política e da direção.
E, por fim, como deixar de ver a extraordinária atualidade de uma concepção da política não separada de princípios éticos e regras morais?
Por ter evocado a “questão moral”, Berlinguer foi muitas vezes acusado de sectarismo e moralismo. E ainda hoje há quem atribua à evocação dessa questão feridas dilacedoras e não curadas.
Em realidade, em tal expressão havia não apenas a consciência da degradação a que o tecido político e institucional estava perigosamente exposto, mas sobretudo a firme convicção de que a credibilidade da política e de quem a representa consiste na transparência, na honestidade, no respeito à autonomia das instituições, na observância das leis e na adoção de comportamentos que não violem essenciais princípios éticos e morais em que todos os cidadãos se reconhecem. Valores e conceitos cuja necessidade podemos bem avaliar num tempo em que a política italiana nos traz todo dia imagens bastante deprimentes.
Refletir sobre Berlinguer, portanto, não em razão de uma nostalgia anti-histórica, mas para aproveitar suas intuições e suas reflexões num tempo presente que, mais uma vez, requer da esquerda e dos reformistas que não tenham medo — como Berlinguer não teve — de percorrer caminhos inexplorados e navegar em mar aberto.
Piero Fassino, expoente do antigo PCI, foi também secretário nacional dos Democráticos de Esquerda, a partir de 2001. Especializado em temas de justiça e política exterior, foi ministro nos Governos italianos chefiados por Massimo D'Alema e Giuliano Amato. Atualmente, é deputado do Partido Democrático.
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil
Tradução: A. Veiga Fialho
Nestes vinte e cinco anos que nos separam do trágico desaparecimento de Enrico Berlinguer, tudo mudou em torno de nós. O mundo, a Europa, a Itália conheceram transformações enormes que nos trazem um cenário inteiramente diferente daquele em que o mais amado secretário do PCI viveu seu extraordinário percurso político e humano.
E no entanto voltar a refletir sobre a ação e o pensamento de um dos dirigentes que mais marcaram a história da esquerda e da democracia italiana é ainda mais útil, porque o nosso tempo nos traz temas sobre os quais Berlinguer teve intuições preciosas e precoces. Quando o secretário do PCI falou de “austeridade”, não havia na nossa linguagem esta outra palavra com a mesma terminação — “sustentabilidade” —, que se tornou hoje de uso cotidiano.
Era a metade dos anos 1970, o tempo da primeira grande crise do petróleo, que levava os países produtores de petróleo a reivindicar uma mudança dos termos de troca e das relações de mercado e de investimento com os países industrializados e consumidores. Muitos consideraram, naquele momento, a austeridade berlingueriana com desconfiança, quase como se fosse uma forma de rejeição da modernidade. Na realidade, Berlinguer compreendeu muito antes do que os outros que uma concepção do desenvolvimento unicamente como ininterrupta produção de bens e de mercadorias está destinada a chocar-se com os limites intransponíveis da natureza e do destino humano. E que fundamentar o desenvolvimento em bases sustentáveis — demográficas, ambientais, sociais — é condição para que o crescimento seja capaz de produzir benefícios dos quais possa desfrutar uma vasta humanidade, sem prejudicar as oportunidades e o destino das gerações futuras.
“Governo mundial” foi outra expressão original que Berlinguer cunhou, querendo sublinhar o desgaste do sistema bipolar e a necessidade de um novo equilíbrio político do planeta, não mais governável com base nas relações de choque, competição ou confronto entre URSS e Estados Unidos.
Mesmo tal expressão podia parecer utópica — e não faltou quem acusasse o líder do PCI de abstrações e visões cheias de veleidade —, quando, ao contrário, Berlinguer antecipava assim um tema que hoje a crise da globalização nos coloca de modo incisivo: a necessidade de uma governance global e de um multipolarismo responsável diante de um mundo cada vez mais único e interdependente, que não pode ser sustentado só pelas soberanias nacionais e suas mútuas relações.
É ainda uma das afirmações mais conhecidas e fortes de Berlinguer — a “democracia como valor universal” — que se mostra hoje vigorosamente atual.
Se, no passado, tal afirmação tinha o significado forte e explícito de contestar o comunismo soviético e seu caráter opressivo, hoje a “questão democrática” revela-se de extraordinária atualidade, numa sociedade em que os poderes das nações se esvaziam, os cidadãos sentem como mais incertos os seus direitos, a política e as instituições surgem fracas e inadequadas, e, até mesmo, crescente é o deslocamento de poderes, decisões, recursos: de instituições legitimadas pelos cidadãos — “democráticas”, precisamente — para lugares e instâncias extrainstitucionais, ao mesmo tempo que se afirmam concepções populistas e plebiscitárias da política e da direção.
E, por fim, como deixar de ver a extraordinária atualidade de uma concepção da política não separada de princípios éticos e regras morais?
Por ter evocado a “questão moral”, Berlinguer foi muitas vezes acusado de sectarismo e moralismo. E ainda hoje há quem atribua à evocação dessa questão feridas dilacedoras e não curadas.
Em realidade, em tal expressão havia não apenas a consciência da degradação a que o tecido político e institucional estava perigosamente exposto, mas sobretudo a firme convicção de que a credibilidade da política e de quem a representa consiste na transparência, na honestidade, no respeito à autonomia das instituições, na observância das leis e na adoção de comportamentos que não violem essenciais princípios éticos e morais em que todos os cidadãos se reconhecem. Valores e conceitos cuja necessidade podemos bem avaliar num tempo em que a política italiana nos traz todo dia imagens bastante deprimentes.
Refletir sobre Berlinguer, portanto, não em razão de uma nostalgia anti-histórica, mas para aproveitar suas intuições e suas reflexões num tempo presente que, mais uma vez, requer da esquerda e dos reformistas que não tenham medo — como Berlinguer não teve — de percorrer caminhos inexplorados e navegar em mar aberto.
Piero Fassino, expoente do antigo PCI, foi também secretário nacional dos Democráticos de Esquerda, a partir de 2001. Especializado em temas de justiça e política exterior, foi ministro nos Governos italianos chefiados por Massimo D'Alema e Giuliano Amato. Atualmente, é deputado do Partido Democrático.
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