O texto era breve - três únicos artigos - mas resultou numa das mais tumultuadas tramitações do Congresso Nacional. A Proposta de Emenda Constitucional nº 6, de 1995, que quebrou o monopólio da Petrobras, começou a tramitar em 20 de fevereiro e foi promulgada em 9 de novembro daquele ano.
Um dos sete dissidentes do PSDB que votaram contra a quebra do monopólio na Câmara dos Deputados, Domingos Leonelli não vê como aquela discussão pudesse ter sido resumida em 90 dias.
Hoje no PSB e titular da Secretaria de Turismo do governo Jaques Wagner (PT) na Bahia, Leonelli lembra o radicalismo das posições que inviabilizaram uma tramitação mais negociada. O presidente Fernando Henrique Cardoso acabara de ser chegar ao Palácio do Planalto pela acachapante eleição do Real com a qual muniu seu discurso de modernização do Estado. Derrubado seis anos antes, o muro de Berlim continuava a ser ininterruptamente golpeado nas acaloradas discussões em plenário.
Os petroleiros, em greve declarada abusiva pela Justiça do Trabalho, ornavam com o clima de confronto. A polícia barrava com gás lacrimogênio e cassetetes os sindicalistas da CUT que, aliados ao MST, tentavam se juntar aos que já haviam entrado no plenário e ameaçavam quebrar os vidros que separam as galerias. Enquanto isso, os militantes engravatados da Força Sindical, pró-quebra do monopólio, distribuíam seus panfletos sem serem importunados. Entre eles, estava o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Paulo Pereira da Silva, que hoje, deputado governista, já nem entra no mérito da regulamentação do pré-sal: quer um fundo para cobrir o déficit da Previdência.
A animosidade era traduzida em artigo ("Folha de S. Paulo", 4/7/1995) pelo então vice-presidente da Volkswagen, hoje ministro do governo Luiz Inácio Lula da Silva, Miguel Jorge: "Não existe mais lugar para o confronto entre teorias utópicas do socialismo - reivindicadas pelo sindicalismo virulento, sob as formas mais bizarras - e a opção do crescimento econômico com pleno emprego".
O radicalismo frustrou, no nascedouro uma saída intermediária, entabulada por Leonelli, de abrir a Petrobras a parcerias com empresas estrangeiras. A proposta, que evitaria a quebra do monopólio, foi negociada com o ministro Sérgio Motta, morto em 1998, e com a Associação dos Engenheiros da Petrobras. "O Serjão topava levar a proposta ao governo, mas os engenheiros se recusaram a ir em frente", lembra Leonelli.
A sessão do dia 7 de junho abriu com uma tentativa de adiamento do então deputado do PCdoB baiano, Haroldo Lima, hoje presidente da Agência Nacional do Petróleo (ANP). A aprovação, às oito da noite, seria folgada - 52 votos a mais do que o governo precisava - e barulhenta.
O então deputado petista Marcelo Deda, hoje governador de Sergipe, daria o tom, ao receber, na entrada do plenário, as informações, mais tarde confirmadas, de que o relator da proposta, Procópio Lima Netto (PFL-RJ), havia recebido R$ 40 mil do grupo Ipiranga: "Os privatistas costumam dizer que a economia deve ser regulada pela mão invisível do mercado, mas essa mão invisível às vezes deixa impressões digitais".
A proposta seguiria para o Senado sob nova tentativa de conciliação. O então senador Roberto Freire (PPS-PE), tentaria garantir a presença do Estado em todos os contratos de exploração firmados a partir da abertura do mercado de petróleo . Hoje um dos mais aguerridos opositores do governo Lula, Freire fracassaria na tentativa de aprovar o artigo, e acabaria votando contra a quebra do monopólio.
O relator, o então senador Ronaldo Cunha Lima (PMDB-PB), arrancaria do presidente Fernando Henrique Cardoso uma carta-compromisso de que a Petrobras não seria privatizada. Depois de recitar "Standard Oil" de Pablo Neruda ("compram paises, povos, mares, polícias, deputados, de longínquas comarcas onde os pobres guardam o seu trigo como os avaros guardam o ouro"), fecharia o apoio à quebra do monopólio que, no Senado, teria 11 votos a mais do que precisava para passar.
O Congresso que promulgaria a emenda era presidido pelo mesmo senador José Sarney (PMDB-AP) - "O país dá um passo decisivo na conquista da confiança internacional" - que, no apoio à quebra do monopólio, foi seguido pela maioria do PMDB, governista de ontem e de hoje, e por conterrâneos fiéis, como o então senador Edison Lobão (PFL-MA), hoje ministro das Minas e Energia e líder da tropa de choque da proposta governista.
Lideranças que hoje figuram na ala lulista do PMDB, como Henrique Eduardo Alves (RN) - líder do partido na Câmara e cotado para relatar a mais importante das quatro propostas hoje em tramitação - e Michel Temer (SP) - presidente da Casa e pré-candidato a vice da ministra-chefe da Casa Civil, acompanharam Sarney no voto pela quebra do monopólio.
A aprovação marcaria uma estréia de sucessivas vitórias do governo FHC no Congresso e abriria caminho para a Lei do Petróleo de 1997. O desmonte de monopólios estatais em nada prejudicaria sua reeleição em primeiro turno. O tema só viraria contra os tucanos mais de uma década depois, na reeleição de Lula.
Se a quebra do monopólio abriu o governo FHC, a retomada do controle estatal deve encerrar a era Lula. A urgência constitucional não evitará a contaminação do debate eleitoral. Os governistas querem aprovar a regulamentação do pré-sal num Congresso sob sua hegemonia, vide a pressão dos governadores aliados de Lula - e discordantes entre si - pela urgência.
Os tucanos querem ter a chance de postergar a discussão para uma legislatura sob seu comando. O presidente, que abandonou o improviso na apresentação das propostas, deu o tom - "a mão invisível do povo" - e entrou na guerra com as suas próprias meladas de óleo. Está chamando os tucanos para a armadilha do confronto.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário