O ex-presidente de Portugal Jorge Sampaio, que é o Alto Representante da ONU para a “Aliança das Civilizações”, teve mais uma das muitas demonstrações de como sua tarefa é difícil aqui no Cairo, no início da semana. Ele, que participava do encontro da Academia da Latinidade, foi convidado para dar uma palestra na universidade Al-Azhar, considerada “o centro do Islã”. Na plateia superlotada, uma clara divisão: estudantes homens para um lado e mulheres para o outro.
Sampaio não se cansou de contar esse fato a quem podia, especialmente a homens do governo egípcio que tentam vender uma imagem mais liberal do país do que a realidade mostra a qualquer um que passeie por suas ruas.
A Aliança das Civilizações é um movimento pacificador organizado pela ONU a partir de um apelo do então recém-eleito presidente de governo da Espanha, José Luiz Zapatero, que assumira o cargo em 2004 em circunstâncias especiais.
O caso espanholto rnouse exemplar da reação da sociedade civil, com o uso de novas tecnologias, à tentativa de manipulação dos governos.
Com receio de que a repercussão de um atentado na estação de trens em Madri, que matou 192 pessoas, fosse negativa para o seu partido, que era o favorito para a eleição de dias depois, o primeiroministro José Maria Aznar direcionou as investigações para a suspeita de que ele fora realizado pelos separatistas bascos do grupo terrorista ETA.
No entanto, as suspeitas de que o atentado havia sido de autoria dos terroristas islâmicos da al-Qaeda, em represália ao apoio do governo espanhol aos Estados Unidos na invasão do Iraque, foram espalhadas pela internet e pelas mensagens dos telefones celulares, e o governo acabou tendo que admitir a verdade.
Essa tentativa de manipulação e a forte rejeição da sociedade espanhola à invasão do Iraque fizeram com que o Partido Socialista, que se posicionava contra a guerra e a favor da retirada das tropas espanholas do Iraque — o que acabou acontecendo —, vencesse as eleições.
Eleito, Zapatero fez um apelo para que a ONU estabelecesse um Grupo de Alto Nível para levar adiante uma Aliança das Civilizações, em oposição à “ guerra das civilizações”, conforme definida pelo historiador americano Samuel Huntington.
O ex-presidente de Portugal, Jorge Sampaio, foi nomeado para coordenar um grupo de 20 intelectuais de diversas partes do mundo — entre eles o brasileiro Cândido Mendes —, que apresentou um primeiro planode ação no final de 2006 e hoje tem em torno de si uma rede de 101 estados e organizações que formam o “Grupo de Amigos”. A terceira reunião mundial da Aliança das Civilizações será realizada no ano que vem no Rio de Janeiro.
O documento principal do movimento tem críticas diretas à tese do “choque de civilizações”, dizendo que ela provocou “ansiedade e confusão” e que “a exploração da religião por ideólogos levou a uma interpretação equivocada de que a religião por si mesma é a raiz do conflito intercultural”.
Destaca ainda o documento que o fundamentalismo “nem sempre é violento” e é comum “a várias fés tradicionais”. O extremismo, por sua vez, “não é religioso por natureza”, e é descrito como a defesa de “medidas radicais na busca de objetivos políticos”.
O embaixador José Augusto Lindgrem Alves é o representante do Itamaraty na Aliança das Civilizações, e trata o tema com o mesmo pragmatismo com que Jorge Sampaio enfrenta seu “inferno” particular.
O embaixador brasileiro deixou claro na palestra que fez na reunião da Academia da Latinidade que “ninguém espera que essa iniciativa erradique as causas do terrorismo contemporâneo. Nem a crença de que culturas tendem a se confrontar.
No mínimo, cria condições para um melhor entendimento mútuo”.
Mas, ressaltou o embaixador, “enquanto tenta conter a disseminação de estereótipos, certamente não alimenta condições para o surgimento do que Amin Maalouf (escritor libanês) chama de ‘identidades assassinas’”.
Classificando-se como “um político”, o ex-presidente Jorge Sampaio diz que não existem “civilizações”, mas culturas diferentes de uma mesma civilização.
Ele considerou os debates das sessões da Academia da Latinidade como uma “metafísica dos tempos modernos ou talvez pós-modernos”. Do ponto de vista operacional, Sampaio se disse interessado nos debates “para formular políticas de boa governança da diversidade cultural” e des envolver “ condições práticas que permitam mudar a realidade”.
Referindo-se ao Egito e ao tema central do debate, a “pós-laicidade”, o representante da ONU perguntou: “Estamos aqui na ‘pós-laicidade’ ou ainda a ‘pré-laicidade’?” Para Jorge Sampaio, vivemos “um momento de transiçoes oe estamos à procura de um novo paradigma”.
Um paradigma “ da racionalidade , da complexidade, do social, do cultural, do religioso, da natureza, de um novo humanismo”.
Em um mundo “cada vez mais comprimido e ao mesmo tempo alargado”, ele define o trabalho da Aliança das Civilizações como o de dar “à democracia novos instrumentos para compor com sociedades em profunda mutação, cujas aspirações são contraditórias”.
Um verdadeiro “trabalho de Sísifo”, define o Alto Representante da ONU Jorge Sampaio, entre esperançoso e cético.
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