O discurso unificador reduziu todos os problemas nacionais à presença do autoritarismo.
Um projeto nacional explicita o sonho de futuro de uma sociedade nacional. A Revolução Francesa perfilou seu projeto, de forma nítida, ao considerar o território o espaço geográfico tornado homogêneo sob o império de leis e instituições aprovadas pela sociedade e ao entender que o território era propriedade inalienável do povo. Com isso, desdobrou para o futuro o espaço aonde o povo nacional preserva sua soberania e explicitou os tributos como a base de sustentação do Estado nacional, assumindo como prioridade a integridade de seu povo. A partir daí, a democracia passa a ser exaltada como o modo de convivência política e gestão do Estado nacional. Nação, povo, Estado e democracia, sonho nascido com a Revolução Francesa, serão os alicerces do projeto nacional da maioria de países.Em simultâneo com o projeto político perfilado pela Revolução Francesa, a Revolução Industrial inglesa transpôs o nível das forças produtivas e reconfigurou a organização econômica e social. A industrialização será o outro componente do projeto nacional explicitado, inicialmente, em um reduzido elenco de países: Estados Unidos, por meio de seus pais fundadores, colocam a industrialização como o alicerce econômico de sua consolidação nacional. Na Europa, a França incorpora o sonho industrial a seu projeto político e algumas nações se organizam pela fusão de fragmentos, caso da Alemanha, que contesta o liberalismo econômico inglês e afirma o conceito de desenvolvimento da economia nacional como um projeto-chave. A Itália atravessará um processo de unificação que sublinha a secularidade do Estado nacional. A Rússia czarista inicia transformações do corpo social, com o objetivo de se industrializar. O Japão realiza uma revolução que combina preservação das tradições nacionais e assimilação do conhecimento científico e tecnológico das nações industrializadas; realiza, sem rupturas, uma reforma agrária definidora de pequenos produtores familiares e institui grupos industriais-financeiros como campeões nacionais.
Esse reduzido e bem sucedido elenco de industrializações aderiu ao liberalismo comercial inglês e passou a ver virtudes na economia de mercado. O resto do mundo ficou disponível para os impérios coloniais: à Europa oriental e à ibero-américa coube o papel de fornecer alimentos e matérias-primas; alguns, a posteriori, despertaram para o sonho industrializante e fizeram da instalação de sistemas industriais a coluna vertebral de projetos nacionais desenvolvimentistas.
O Brasil foi exitoso com seu projeto nacional-desenvolvimentista, mesmo combinando o conservadorismo agrário com a modernização urbana. De 1930 até 1980 teve uma evolução das forças produtivas extremamente dinâmica. Cresceu o PIB 7% ao ano. e transferiu 80% de sua população para a rede urbana. Apesar de assimilar variadas instituições referentes às políticas sociais - construiu o sistema de previdência social que inclui praticamente todos os brasileiros, foi extremamente lento, para não dizer displicente, em relação ao povo. O problema social brasileiro, antes circunscrito ao campo, transferiu-se para a rede urbana-metropolitana. As carências múltiplas de habitação, saúde e alimentação "prosperaram" num cenário social de péssima distribuição de renda e propriedade.
Após o regime militar autoritário, o Brasil reconstrói o Estado de direito e a Constituição de 1988 propõe como projeto nacional resolver a questão social, assumindo a ideia de um orçamento de seguridade social que agregaria a legislação de proteção ao trabalho, a prioridade à saúde e à assistência social dos grupos fragilizados do corpo social. A Constituição preservou o Estado brasileiro com as instituições e instrumentos político-econômicos estabelecidos ao longo do projeto nacional desenvolvimentista; manteve as empresas estatais e sublinhou a definição do que seria empresa nacional.
Com o risco de toda simplificação, o processo inflacionário acelerado e a pressão ideológica e operacional do neoliberalismo de Thatcher, Reagan e outros, somados à fragilidade das contas externas, leva o Brasil a desmantelar a Constituição, esvaziando a ideia de orçamento de seguridade e desmontando o instrumental político-econômico do Estado nacional brasileiro. O sonho da industrialização foi dissolvido pelo discurso pró-globalização e pelo esgotamento do modelo de desenvolvimento. O Brasil aparece com lento crescimento econômico, emergência de tensões sociais urbanas e cronificação de desigualdades.
Durante a luta pela restauração democrática, o discurso unificador da frente hiper ampla contra a ordem militar-política havia reduzido todos os problemas nacionais à presença do autoritarismo. Não houve a discussão das matrizes do autoritarismo brasileiro; a democracia foi "vendida" como uma panaceia para todos os problemas brasileiros. A ausência de eleições diretas cancelou discussões preparatórias de uma nova etapa para o Brasil. O fracasso político-econômico de enfrentamento da inflação abriu caminho para as receitas neoliberais e delas emanaram a estagnação macroeconômica e retrocesso nas forças produtivas. A juventude pós-autoritarismo perdeu a esperança no futuro brasileiro. Quando do primeiro mandato do presidente Lula, o ministro Gushiken ficou (corretamente) preocupado com o Brasil em pior posição ante as demais nações ibero-americanas, em matéria de autoestima e lançou a campanha que teve como mote: "o melhor do Brasil é o brasileiro". Hoje, já é claro o sinal de senilidade da campanha, a partir do sonho do jovem brasileiro de migrar para o exterior.
Não há pior veneno para o futuro nacional do que o desânimo que acompanha a perda de esperança da juventude quanto ao país. Explicitar um projeto nacional é prioridade para a preservação da identidade e da autoestima do Brasil; exige colocar o presente do país em pauta. Um projeto nacional é sempre percebido e adotado em parte pelos atores sociais que preconizam mudanças mais ou menos acentuadas em dimensões estruturais e comportamentais de uma sociedade nacional. Obriga os conservadores a saírem da casca; cria uma diferenciação entre aqueles que querem preservar intacto o status quo e aqueles que admitem - via negociação - adaptações e transformações parciais. Pensar o futuro ilumina o presente; restaura esperanças e dá substância à retórica democrática convertendo-a em prática substantiva social e política.
O planejamento como atividade pública é construtor da grande pauta de referência para a juventude. As carreiras de planejamento (inclusive das empresas estatais remanescentes) formam uma burocracia que não pode ficar obscura e silenciosa. Como uma dimensão essencial de sua atividade, têm que estar abertas aos sinais da sociedade e se expor ao debate.
Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira, ex-reitor da UFRJ e foi presidente do BNDES.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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