Lançado este ano na Alemanha depois de décadas de trabalho, terceiro volume de ‘O capital’ editado a partir dos manuscritos evita amarras ideológicas e ilumina debates sobre a crise atual
Por Jorge Grespan*
A persistência da crise econômica atual, cada vez mais grave e disseminada, vem jogando por terra todas as teorias que a consideram fruto de uma situação passageira, do desarranjo de variáveis conjunturais ou de práticas de gestão fraudulenta. Nesse contexto, cresce o interesse pela obra de Karl Marx (1818-1883), cuja explicação para as crises as colocam na base mesma da valorização do capital, como um fenômeno estrutural e de ocorrência inevitável.
De certo modo, esse é o núcleo da crítica de “O capital”, obra que ficou inacabada, provocando até hoje grandes polêmicas. Não podia, então, ser mais oportuna a notícia de que se completou a publicação da seção inteira dedicada a ela na edição integral de Marx e Engels (Marx-Engels Gesamtausgabe, ou MEGA), em curso na Alemanha desde meados da década de 1970. (A MEGA é a base da nova tradução brasileira de “O capital”, pela Editora Boitempo, que lançou o primeiro volume da obra este ano e prevê os outros dois para 2014 e 2015.)
Iniciada e interrompida por motivos políticos no passado, em sua versão atual a MEGA é vinculada à Academia de Ciências de Brandemburgo, em Berlim, e deverá ter 114 volumes, divididos em quatro seções: a primeira traz os escritos de Marx e de Engels sobre História, filosofia e política; a segunda é a seção referida acima, dedicada a “O capital” e seus escritos preparatórios; a terceira contém as cartas enviadas e recebidas pelos dois autores, incluindo as de seus correspondentes; e a quarta traz anotações de estudo e esboços de texto sobre vários assuntos, escritos por eles durante toda a vida.
A seção II é a primeira a se completar, com o lançamento do volume 4.3 no começo deste ano. Nela, haviam sido publicados, desde a década de 1970, os volumes com as edições e traduções do Livro I de “O capital” feitas em vida de Marx e Engels. Mas a preparação posterior dos Livros II e III e dos textos de 1864 a 1868 apresentou dificuldades muito maiores.
Como se sabe, foi o próprio Engels quem se encarregou de editar os manuscritos deixados por seu amigo quando morreu, em 1883. E a tradição marxista confiou plenamente no trabalho realizado por ele no Livro II, em 1885, e no Livro III, em 1894. No entanto, a publicação dos originais pela MEGA, desde o começo da década de 1990, trouxe revelações surpreendentes. Para começar, o estado de grande parte dos manuscritos era rudimentar, como Engels de fato atestara nos prefácios das suas edições. O que ele não disse, porém, foi o quanto ele modificou os originais, introduzindo passagens não existentes, alterando a redação de Marx, e até escrevendo um dos capítulos do Livro III, do qual só encontrara o título.
Purismos à parte, existem diferenças relevantes entre as duas versões. Em especial sobre a teoria das crises, as diversas explicações oferecidas nos capítulos 14 e 15 do Livro III podem ser sistematizadas de outra forma, distinta da proposta por Engels. E, assim, a relação de variáveis como o subconsumo, o aumento dos salários e a elevação da chamada composição orgânica do capital — as três condições principais da queda da taxa geral de lucro — pode ser reformulada, algo de grande significado para o debate sobre a presente crise. Mas também a seção dedicada ao capital a juros, ainda no Livro III, sofreu modificações decisivas na edição de Engels, e o confronto com os originais deve alterar em muito a informação corrente sobre as concepções de Marx a respeito do crédito, tema, aliás, que ele vinha estudando com afinco nos anos imediatamente anteriores à sua morte.
O volume 4.3 da seção II da MEGA, agora publicado, exacerba o debate. São textos escritos a partir de 1868, que atestam a dificuldade de Marx em continuar a obra, depois das reformulações feitas de última hora no Livro I. Surgem, daí, várias hipóteses explicativas de ela ter sido quase abandonada pelo seu autor. Longe dos problemas de saúde ou da dedicação à militância, os motivos podem ter sido de ordem teórica. Talvez Marx não conseguisse retomar a exposição do bom funcionamento do capital, no Livro II, após o pessimismo do fim do Livro I. Ou talvez ele tivesse entrado numa nova fase de estudo e de avaliação do sistema correspondente aos desdobramentos históricos das décadas de 1870 e 1880. O volume 4.3 da MEGA não permite uma conclusão definitiva, mas o questionamento vivo e instigante.
Acima de tudo, com a sua publicação encerra-se todo um ciclo. A queda do Muro de Berlim determinou o fim dos vínculos diretos da MEGA com qualquer partido ou tendência marxista específica, e com isso, a sua orientação passou a ser exclusivamente de ordem filológica e crítica de texto. Nessa nova situação, a sua contribuição fundamental para o pesquisador é desfazer a falsa imagem de “O capital” como obra fechada e acabada, que as edições tradicionais sugerem. Na MEGA, Marx aparece como pensador que se repensa diante da realidade em mudança contínua. Para o pesquisador, essa é a contribuição mais importante.
*Jorge Grespan é professor de Teoria da História na USP e autor de “O negativo do capital” (Expressão Popular)
Fonte: Prosa / O Globo
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