Ontem, a Presidência da República parecia literalmente desnorteada. Debulhava-se em dúvidas sobre qual deve ser a prioridade da política externa do Brasil: Washington ou La Paz?
A visita de Estado aos EUA, divagava Dilma Rousseff com assessores antes de receber um telefonema de Barack Obama, poderia passar uma "mensagem errada" às vésperas da temporada de disputa reeleição. Afinal, argumentou-se, a soberania nacional fora violada pela espionagem, e Obama não "explicou" ou "pediu desculpas" — como Dilma "exigiu" publicamente.
Cancelar a visita a Washington, insistia-se, produziria um "fato político" relevante para a campanha de 2014 — mulher no comando do Brasil diria "não" ao homem que ocupa o cargo percebido como o mais poderoso do planeta. Nesse enredo, Washington seria substituída por La Paz. Imaginou-se convidar Evo Morales, numa espécie de "desagravo" pelo abrigo a seu principal adversário, o senador Roger Pinto Molina. Por conveniência, decidiu-se "esquecer" que o desafeto de Evo foi asilado na embaixada brasileira em La Paz, há 15 meses, por ordem direta de Dilma ao Itamaraty.
Depois evoluiu-se para uma visita à Bolívia. Dilma levaria uma cesta de "compensações" entre elas o desembolso de US$ 320 milhões da Petrobras por um acordo feito em 2011 sobre volumes importados de hidrocarbonetos com alto conteúdo de GLP e gasolina natural.
O significado local da viagem de Dilma, com essa dinheirama extra — além dos US$ 5 bilhões em compras de gás neste ano (dez vezes mais do que se importava da Bolívia há uma década) —, teria grande efeito político para Morales, que em 2014 vai tentar conquistar um terceiro mandato. A expansão no comércio Brasil-Bolívia tem outro aspecto, mais subterrâneo que os dutos de gás: a multiplicação do tráfico de cocaína para Rio, São Paulo e Belo Horizonte, como mostram inúmeros relatórios colecionados pelo Ministério da Justiça.
Por conveniência, decidiu-se também "esquecer" os gestos bolivianos de "violação" da soberania brasileira na expropriação da Petrobras, com soldados e fuzis, em 2006; na revista do avião do ministro da Defesa com soldados e cães, no ano passado; e a quebra da promessa pública de Morales, provocada por Dilma em reunião de presidentes da Unasul, de que não daria uma volta na Constituição boliviana para concorrer a um terceiro mandato.
Entre Brasília e Washington há 6,7 mil quilômetros. Pelo humor de Dilma até o telefonema de Obama, a distância política podia ser medida em anos-luz. E, como no mapa-múndi que enfeita o gabinete do chanceler, na bússola presidencial, ontem o norte brasileiro parecia estar exatamente a oeste de Brasília.
Quando o sol caiu, o anúncio da decisão sobre Washington já perdera a essência, até por efeito do telefonema contemporizador de Obama. Restava uma certeza: quando há dúvida sobre qual deve ser a prioridade da política externa brasileira, é porque alguma coisa está fora de ordem na Presidência da República do Brasil.
Fonte: O Globo
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