domingo, 21 de agosto de 2016

Reformismo e democracia em Celso Furtado – Raimundo Santos{1}

Em textos publicados entre os anos 1950 e 1964, Celso Furtado revela-se um publicista como tantos outros intelectuais ideólogos da revolução nacional-popular dessa época. São livros, coletâneas, introduções, artigos e análises de conjuntura que revelam o sentido da militância do economista quando esteve à frente da Sudene e atuou no governo de João Goulart, do qual foi Ministro do Planejamento e elaborou o seu Plano Trienal de desenvolvimento econômico e social do seu governo (1963-1965).2

Este artigo, entretanto, põe o seu foco nos textos furtadianos mais formulativos escritos entre o começo da década de 1960 e janeiro de 1964. Primeiramente descreve a singularidade da estratégia de Furtado para a superação do subdesenvolvimento brasileiro por meio de um reformismo democrático com a vigência permanente das liberdades. Depois, refere-se à associação que o autor faz entre a flexibilização do sistema político brasileiro e a ativação camponesa como problema crucial para as possibilidades do caminho reformista proposto. Em sua última parte, o artigo menciona algumas questões que tensionam a formulação do modelo desenvolvimentista furtadiano.

Os textos aqui resenhados compõem os dois principais livros de intervenção política de Furtado: Subdesenvolvimento e Estado democrático e A pré-revolução brasileira. O primeiro traz escritos do tempo da sua atuação na Sudene, reunidos em novembro de 1961 no volume que será publicado em 1962 no Recife. O outro, bem mais conhecido, republica parte daquele livro, inclusive reproduz como texto introdutório a sua mesma introdução,3 sendo publicado em agosto do mesmo ano pela editora Fundo de Cultura do Rio de Janeiro na sua coleção “Perspectivas do nosso tempo”.4 Há também um terceiro livro por demais expressivo da publicística do autor, Dialética do desenvolvimento, contendo artigos escritos entre setembro de 1963 e janeiro de 1964, mas que só veio a lume em junho de 1964, tendo sido reimpresso três meses depois. Seis em nove dos seus capítulos dialogam com vários escritos políticos de Marx, Engels e Lênin.

A exposição que segue se concentra no principal artigo de A pré-revolução brasileira, Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”, publicado originariamente pela Revista de Ciências Sociais em março de 1962. Este texto começa descrevendo a circunstância histórica que desafiava a inteligentsia brasileira e os jovens universitários aos quais nesse tempo Furtado dirigia sua convocatória à ação política transformadora do país. O autor parte da caracterização do desenvolvimento brasileiro ocorrido desde 1930, relevando seus aspectos sociais “extremamente negativos”. O principal deles, o “desmedido” custo social, diz Furtado, “tem sido uma crescente concentração social e geográfica da renda. As grandes massas que trabalham nos campos, e constituem a maioria da população, praticamente nenhum benefício auferiram desse desenvolvimento” (FURTADO, 1962a, p. 14). 



Inclusive tiveram redução no seu padrão de vida, quando confrontados com o de grupos ocupados em outros serviços (Ibidem). O operariado industrial, cada vez mais numeroso em termos absolutos e relativos, tampouco havia tido melhora importante no seu padrão de vida, tendo experimentado “piora relativa, pois, com o grande crescimento do emprego urbano nos serviços, os operários presenciam a ascensão de outros grupos sociais, de rendas mais altas” (Ibidem).

O autor detém-se em duas questões negativas da modernização econômica. A primeira refere-se ao fato de que, devido ao anacronismo da estrutura agrária, o desenvolvimento provocou “em muitas partes” um aumento relativo da renda da terra, fortalecendo “grupos parasitários”. Na ausência de uma política consciente “que preservasse à ação do Estado o seu caráter social, improvisou-se, em nome do desenvolvimento, uma estrutura de subsídios”, que “muitas vezes” premiava “de preferência investimentos supérfluos ou aqueles que vinham permitir, dada a sua tendência monopolista, uma concentração ainda maior de riquezas em mãos de grupos privilegiados” (Ibidem).

A segunda questão negativa são as distorções no plano político-administrativo. A ampliação e a diversificação que as funções estatais experimentaram no contexto da modernização (“causa e efeito do desenvolvimento”) não se fizeram acompanhar das “necessárias ‘reformas de base’ no próprio Estado” (Idem, p. 15). 

Reformas que viriam corrigir três distorções principais reproduzidas no processo “desordenado” de desenvolvimento: o aumento do desperdício “na ação da ação pública”, a “apropriação ilícita de capital à custa do povo”, os contratos de obras públicas, fonte de “acumulação de grande fortuna, dentro e fora do Governo” (Ibidem). Furtado sublinha que seriam das classes agrárias e “parasitárias”, de longa data de posse do aparato de governo para fins particularistas retrógrados, de onde viriam as maiores dificuldades tanto às transformações reformistas no plano econômico-social como na esfera do sistema político, no qual exerciam influência conservadora no Legislativo, desvirtuando a representação popular que mostra os “vícios do sistema” (Ibidem).5

Entretanto, o economista adverte o lado positivo da modernização, de onde traz o ponto central do seu argumento: “O desenvolvimento trouxe para dentro do país os centros de decisão, armou-o para autodirigir-se, impôs-lhe a consciência do próprio destino, fê-lo responsável pelo que ele mesmo tem de errado” (Idem, p. 15-16). É essa modificação estrutural na formação social que leva Furtado a ver com otimismo a circunstância política que se configura após os acontecimentos de agosto de 1954.

Essa perspectiva decorria do largo “trabalho construtivo” que vinha empreendendo desde o começo da década de 1950 como contribuição a um cada vez mais urgente “esforço de crítica e reformulação do pensamento econômico, visando a um conhecimento mais eficaz dos problemas do subdesenvolvimento” (FURTADO, 1961, p. 16).6 

O autor revela as três janelas que foram descortinando-se na sua busca de um “aparato conceitual” apropriado ao tema do subdesenvolvimento, a saber: a do estudo da Ciência Econômica “ensinada nas universidades”, a da “eclosão vulcânica” da “construção keynesiana”; e a janela do pensamento marxista que, por sua natureza crítica, “apresentava elevada eficácia, o que contribuía para a sua rápida penetração nas fases em que se acelerava o processo de mudança social” (Ibidem).7 No entanto, Furtado fazia esta ressalva ao pensamento marxista: “Mas, não oferecendo soluções construtivas, fora de posições dogmáticas, limitava extremamente a perspectiva do esforço intelectual criador” (Ibidem).

Fundada na sua clássica obra Formação econômica do Brasil (1959), a tese do deslocamento do centro dinâmico da economia exportadora para o mercado interno não é um axioma da sociologia da modernização que circulava naqueles tempos desenvolvimentistas.8 Furtado parte do dinamismo da própria formação brasileira, que não era mera economia reflexa: “A economia de nosso país alcançou um grau de diferenciação – o que é distinto do nível convencional de desenvolvimento medido pela renda per capita – que permitiu transferir para o país os principais centros de decisão de sua vida econômica. Em outras palavras: o desenvolvimento recente da economia brasileira não se fez apenas no sentido de elevação da renda real média do habitante do país, também assumiu a forma de uma diferenciação progressiva do sistema econômico, o qual conquistou crescente individualização e autonomia. O Brasil está repetindo, até certo ponto, a experiência do Japão em decênios anteriores: a conquista da autodeterminação no plano econômico em fase caracterizada por um nível de renda per capita típico de país subdesenvolvido” (FURTADO, 1961; 1962b). 

O autor não se deixava levar pelos fatos incoercíveis da “tendência histórica à estagnação” que ele próprio assinala ser a marca dos países subdesenvolvidos devido aos impulsos internos recessivos de suas economias (cf. FURTADO, 1964a).

A crítica a essa tese minimiza o ponto de vista construtivo do autor naqueles tempos de Juscelino e Jango em que a discussão sobre as reformas da economia e a revolução ganhou a cena pública nacional. A vida política se dinamizara com as movimentações de atores sociais e protagonistas políticos e partidários, inclusive com as lutas por direitos e pela terra que irrompiam na esfera pública desde meados dos anos 1950.

Furtado identifica as grandes dificuldades estruturais e políticas interpostas à possibilidade de desenvolver o capitalismo no Brasil, mas expressa com ela a referência básica para um chamado à ação transformadora, situando-se distante dos diagnósticos recessivos e dos funcionalismos marxistas que já sedimentavam as tendências catastrofistas de algumas das teorias da dependência.9 Com sua proposição é um dos publicistas que então punham na cena político-intelectual dos reformistas e revolucionários o desafio de administrar o capitalismo e tentar reformá-lo sob o regime democrático.

Reformismo com vigência permanente das liberdades
Sob o influxo da reconstrução europeia após a derrota do nazi-fascismo, Furtado procura mostrar no artigo “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira” que a concretização de reformas graduais no regime democrático constitui o único caminho para alcançar o desenvolvimento e firmar uma sociedade aberta e pluralista no Brasil. Primeiramente ele apresenta os princípios desse reformismo em diálogo com o marxismo, à época largamente aceito pelos estudantes universitários. Depois, diferencia-o radicalmente das experiências das revoluções socialistas, contrapondo sua estratégia reformista ao crescimento econômico da União Soviética, àquela época considerado paradigma do desenvolvimento não capitalista.

O economista atribui a influência do marxismo na juventude a três dos seus pontos doutrinários de grande convencimento: o marxismo denuncia a ordem social existente como uma ordem “em boa medida” baseada na exploração homem pelo homem, revela o caráter histórico da realidade social, indicando ser possível identificar-se “os fatores estratégicos que atuam no processo social”, e abre a porta à “política consciente de reconstrução social” (FURTADO, 1962a, p. 17). Ele vê neste ponto sua “atitude positiva e otimista, com respeito à ação política, e bem corresponde aos anseios da juventude” (Ibidem). 

Assim resume suas observações sobre o marxismo: “... aí encontramos, por um lado, o desejo de liberar o homem de todas as peias que o escravizam socialmente, permitindo que ele se afirme na plenitude de suas potencialidades, e, por outro, descobrimos uma atitude otimista com respeito à autodeterminação consciente das comunidades humanas. Trata-se, em última instância, de um estádio superior do humanismo; pois, colocando o homem no centro das preocupações, reconhece, contudo, que a plenitude do desenvolvimento do indivíduo somente pode ser alcançada mediante a orientação racional das relações sociais” (Ibidem).

O autor reconhece na filosofia social de Marx os “anseios profundos do homem moderno”, cujas raízes mais vigorosas, diz ampliando o ponto, “vêm do humanismo renascentista que recolocou na pessoa humana o foco do seu destino, e seu otimismo congênito emana da Revolução Industrial que deu ao homem controle do mundo externo” (Idem, p. 17-18).

Tendo essa “tela de fundo de autodeterminação e consciência de responsabilidade”, Furtado anuncia os objetivos fundamentais da sua convocatória à ação política: “Creio que esses objetivos poderiam ser facilmente traduzidos, tomando por base a análise anterior, nas expressões: humanismo e otimismo com respeito à evolução material da sociedade. Em linguagem mais corrente: liberdade e desenvolvimento econômico” (Idem, 19).

O otimismo em relação à “vida material” tem valor estratégico na busca de uma nova sociedade: “O desenvolvimento econômico é, em sentido estrito, um meio. Contudo, constitui um fim em si mesmo”, frisa o autor, “um elemento irredutível da forma de pensar da nova geração, a confiança em que o alargamento das bases materiais da vida social e individual é condição essencial para a plenitude do desenvolvimento humano” (Idem, p. 20).

Ele recusa a visão obscurantista quanto ao futuro daquele tempo de reconstrução econômica do segundo pós-guerra, pondo-se em posição “antitética da lenda do bom selvagem”, não se deixando seduzir pelas miragens de “uma nova Idade Média”, nem se comovendo diante das inquietações daqueles “que veem no progresso técnico as sementes da destruição do ‘homem essencial’” (Ibidem). 

Ao contrário, viria trazer a questão ocidental da “falsa dicotomia” entre a liberdade e o desenvolvimento econômico para o contexto dos países subdesenvolvidos, nisto diferindo seu pensamento publicista de outras versões da revolução nacional-popular influentes na cena intelectual do campo das “forças progressistas e populares” (expressão da época).

Revolução dirruptiva e desenvolvimento econômico
Por outra parte, Furtado distingue sua estratégia desenvolvimentista do socialismo. A questão da prevalência dos “fins verdadeiros” sobre os objetivos intermediários na transformação das sociedades, diz ele, constitui o “ponto central” das suas reflexões: “É este um problema complexo, pois a experiência histórica dos últimos decênios criou a aparência de uma forçada opção para os países subdesenvolvidos entre a liberdade individual e o rápido desenvolvimento material da coletividade" (Idem, p. 21).

A revolução socialista de 1917 na Rússia, país atrasado com vastos contingentes rurais (“um oceano de camponeses, na expressão de Lênin) significa para ele o exemplo de um processo de transformação social doutrinariamente dirigido que perde os seus “fins últimos”. Descreve o êxito da União Soviética como um crescimento econômico alcançado “com base parcialmente em métodos anti-humanos”, citando as “expropriações dos excedentes agrícolas, destinados a financiar o desenvolvimento industrial, feitas manu militari” mediante “coletivização compulsiva e repressão violenta de toda resistência” (Ibidem). 

Registra que o “método drástico” da apropriação direta do produto excedente do setor camponês, realizada por “método administrativamente mais fácil”, resultou no “enorme preço em vidas humanas” (Idem, p. 21-22). E realça também o fato de que esse tipo de avanço econômico “tem sido acompanhado de formas de organização político-social em que se restringem, além dos limites do que consideramos tolerável, todas as formas de liberdade individual” (Idem, p. 22).

O rápido crescimento da economia soviética se difundira no mundo dos Partidos Comunistas (PCs) e fora dele como modelo exitoso. Furtado vê essa tese como uma questão “obscurecida” por “uma confusão de conceitos, inconsciente ou propositada” (Idem, p. 24). O essencial nessa discussão, volta a dizer, é que façamos “uma clara distinção entre aqueles objetivos últimos, dos quais não devemos nos afastar na luta pelo aperfeiçoamento das formas de convivência – os quais foram incorporados à filosofia de Marx, mas constituem elementos de uma concepção do mundo mais ampla e em gestação no Ocidente desde o Renascimento – das técnicas elaboradas para a consecução total ou parcial desses objetivos” (Idem, p. 24-25). 

E lembra ainda que a doutrina marxista-leninista postula uma revolução “inevitavelmente violenta” sob a liderança de um partido de “revolucionários profissionais” (ver Lênin, 1902; 1975a; 1906;1975b). Uma revolução cujo fim era construir “uma nova ordem que deverá ser assegurada por um regime ditatorial, o qual perdurará durante um período de duração indefinida” (Idem, p. 25); “forjada e aperfeiçoada na luta pela destruição de uma estrutura político-social totalmente rígida, a tzarista”, diz ainda aludindo à experiência de 1917 (Ibidem).

Por outra parte, refere-se aos países da Europa central, onde revoluções “de fora para dentro” mostraram que as “grandes máquinas partidárias de orientação marxista-leninista ficaram traumatizadas diante de uma realidade político-social em permanente mutação” (Ibidem). A explicação dessa ineficácia do modelo da revolução russa no Ocidente, registra Furtado, devia-se ao fato de que o Estado nessas sociedades não se reduz a órgão de dominação de classe, a mera “força especial de repressão”. Essa era a simplificação com que o marxismo-leninismo “unificava” a “ação revolucionaria” dirigida à captura dos seus aparatos estatais (Ibidem). 

Daí ele extrai um ponto para o argumento reformista: “A partir do momento em que o Estado deixa de ser uma simples ditadura de classe para transformar-se num sistema compósito, representativo de várias classes, se bem que sob égide de uma, aquela técnica revolucionária perde eficácia. A necessidade de discriminar entre o que Estado faz de bom e de ruim, do ponto de vista de uma classe, exige uma capacidade de adaptação que não pode ter um partido revolucionário monolítico” (Idem, p. 25-26).

As críticas de Furtado ao socialismo e ao marxismo-leninismo mostram o seu reformismo como uma estratégia apropriada a uma sociedade diferenciada: “O problema fundamental que se apresenta é, portanto, desenvolver técnicas que permitam alcançar rápidas transformações com os padrões de convivência humana de uma sociedade aberta. Se não lograrmos esse objetivo, a alternativa não será o imobilismo, pois as pressões sociais abrirão caminho, escapando a toda possibilidade de previsão e controle” (Idem, p. 26). Elas apontam também para o outro lado da questão que são as consequências do fracasso de uma revolução democrática: "Ter logrado formas superiores de organização político-social representa uma conquista pelo menos tão definitiva quanto haver atingido altos níveis de desenvolvimento material. Deste ponto de vista, em uma sociedade aberta, onde foram alcançadas formas de convivência complexas, a revolução de tipo marxista-leninista representa óbvio retrocesso político (Idem, p. 27).

A dualidade do sistema político-social e os camponeses
Tendo como pano de fundo suas reflexões sobre o capitalismo e o socialismo, Furtado associa as possibilidades do caminho reformista à questão camponesa nas suas dimensões da reforma agrária, da incorporação à vida nacional e da ativação social. Para equacioná-la numa perspectiva construtiva, traz da experiência capitalista o tema do papel decisivo das classes, da luta de classes e, em particular, da flexibilização institucional no desenvolvimento econômico. Suas reflexões críticas ao socialismo levam-no a associar o êxito do seu desenvolvimentismo à preservação do clima de liberdades vigente à época no país, diversamente das estratégias de ativação camponesa dirigidas a constituir uma outra ordem social à semelhança da revolução russa de 1917 (ver Lênin, 1905; 1975c).

Na circunstância brasileira a questão da institucionalidade adquire grande realce no processo de mudança social proposto. Aqui ela vai significar ao mesmo tempo a flexibilização das “estruturas básicas” da formação social e a abertura do sistema político à integração dos desvalidos do mundo agrário na vida nacional. Assim Furtado faz esta associação: “... a classe camponesa, no Brasil, é muito mais suscetível de ser trabalhada por técnicas revolucionárias do tipo marxista-leninista do que a classe operária, se bem que do ponto de vista marxista ortodoxo, esta última deveria ser a vanguarda do movimento revolucionário. É que nossa sociedade é aberta para a classe operária, mas não para o camponês. Com efeito: permite o nosso sistema político que a classe operária se organize para levar adiante, dentro do jogo democrático, as suas reivindicações. A situação dos camponeses, entretanto, é totalmente diversa. Não possuindo qualquer direito, não podem ter reivindicações legais. Se se organizam, infere-se que o fazem com fins subversivos. A conclusão necessária que temos a tirar é a de que a sociedade brasileira é rígida em grande segmento: aquele formado pelo rural. E com respeito a esse segmento é válida a tese de que as técnicas marxista-leninistas são eficazes” (FURTADO, 1962a, p. 28).

Essa tese dualista envolve duas questões. A primeira é a da capacidade do sistema político para absorver os conflitos, questão a que busca atender o gradualismo da estratégia furtadiana: “Na medida em que vivemos numa sociedade aberta, a consecução dos supremos objetivos sociais tende a assumir a forma de aproximações sucessivas. Na medida em que vivemos numa sociedade rígida, esses objetivos sociais tenderão a ser alcançados por uma ruptura cataclísmica” (Idem, p. 28-29). A outra questão se refere propriamente às ações dos atores, particularmente na urgência das soluções positivas para as reformas e – é preciso relevar este ponto – à sustentação política ao governo da qual depende o processo reformista.

Quanto às possibilidades de o caminho democrático seguir curso contínuo, Furtado prevê duas situações em que se poderia chegar a um impasse: “Na medida em que este (o setor rural – RS) se conserve com a rigidez atual, todo movimento reivindicativo que surge nos campos tenderá a assimilar técnicas revolucionárias de tipo marxista-leninista. Temos, assim, na corrente do processo evolucionário, um importante setor de vocação marxista-leninista que em determinadas condições poderá liderá-lo. A consequência prática seria o predomínio, na revolução brasileira, do setor de menor desenvolvimento político-social. Os autênticos objetivos do nosso desenvolvimento, anteriormente definidos em termos do humanismo, estariam parcialmente frustrados de antemão” (Idem, p. 29)..

A outra possibilidade de ocorrer uma revolução marxista-leninista seria um retrocesso na estrutura política no país: “A imposição de uma ditadura de direita tornando rígida a estrutura política, criaria as condições propícias para uma efetiva arregimentação revolucionária de tipo marxista-leninista” (Ibidem). O autor assim volta ao ponto da diferenciação da sociedade brasileira anteriormente referida: “Sem condições objetivas determinadas por um retrocesso político-social no país, com a destruição da capacidade de defesa do setor urbano, que já desfruta de formas de convivência política superiores, a única possibilidade decorre da persistência da estrutura agrária anacrônica” (Idem, p. 30).

Mas ele também traz a questão das formas da revolução ao terreno das incertezas, observando que, à medida que modificações nas “estruturas básicas” tardassem, que as ansiedades coletivas continuassem crescendo, tendo o desenvolvimento econômico se tornado um “imperativo político”, já se vivia uma '“autêntica fase pré-revolucionária”. A questão das técnicas de transformação social havia passado “ao primeiro plano das preocupações políticas” (Ibidem).

A hipótese da interdição do curso democrático daqueles anos não seria um evento naturalístico que viria de um céu azul: “Para evitar um retrocesso social não basta desejá-lo: é necessário criar condições objetivas de caráter preventivo. O retrocesso na organização político-social não virá ao acaso, e sim como reflexo do pânico de certos grupos privilegiados em face da pressão social crescente. Não permitindo as rígidas estruturas adaptações gradativas, a maré montante das pressões tenderá a criar situações pré-cataclísmicas” (Idem, p. 31). Na mesma passagem, o autor voltava à questão institucional: “Nessas situações é que os grupos dominantes são tomados de pânico e se lançam às soluções de emergência ou golpes preventivos. Fossem as modificações progressivas ou gradativas, e o sistema político-social resistiria” (Ibidem).

A prevenção do retrocesso político não era mera retórica defensiva, mas uma perspectiva construtiva dependente de iniciativas que levassem adiante “a tarefa básica” de “dar maior elasticidade às estruturas” por meio de “modificações constitucionais”. O que envolvia a ação política (“caminhar com audácia” nesta questão, diz Furtado) para criar condições à “realização” das reformas, dentre elas a reforma agrária, a modificação “pela base” da maquinaria administrativa estatal, a reforma do sistema fiscal e a da estrutura bancária” (Ibidem). Essa indicação programática requeria “subordinar a ação estatal a uma clara definição de objetivos de desenvolvimento econômico e social, cabendo ao Parlamento estabelecer diretrizes”.10 Menciona ainda a necessidade de o país ter um marco regulatório da ação do capital estrangeiro, estabelecer meios de o governo ”conhecer a origem de todos os recursos aplicados aos órgãos que orientam a opinião pública”, e elaborar um plano de desenvolvimento econômico e social que viria ser o Plano Trienal elaborado no final de 1962, justamente priorizando aquelas reformas.

Algumas tensões nas formulações furtadianas
A formulação do modelo furtadiano apresenta problemas que repercutem no plano político. Em primeiro lugar, ver a superação do subdesenvolvimento como um processo histórico importa mencionar os seus atores. De fato, na última página “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”, o autor se refere aos protagonistas da transformação proposta: “Que devemos fazer para transformar em normas de ação esses desejos e aspirações? Creio que a tarefa mais imediata é organizar a opinião pública para que ela se manifeste organicamente (grifos do autor deste artigo). Cabe aos estudantes, aos operários, aos empresários, aos intelectuais, quiçá aos camponeses, através de suas organizações incipientes, iniciar o debate franco daquilo que esperam dos órgãos políticos do país. Os problemas mais complexos devem ser objeto de estudos sistemáticos por grupos de especialistas, devendo as conclusões ser objeto de debate geral. O país está maduro para começar a refletir sobre seu próprio destino. Dos debates gerais e das manifestações da opinião pública deverão surgir as plataformas que servirão de base à renovação da representação popular” (Idem, p. 32).

Tendo como fulcro do processo reformista esse tipo de movimento de opinião pública -- que se manifeste organicamente, repitamos a expressão indefinida acima grifada --, Furtado não alude a um terreno realista apropriado à configuração política dos atores-protagonistas, diversamente de um grupo de esquerda marxista e leninista, como o PCB, por exemplo, que em seus textos define como cenas de agregação e avaliação da força política no campo dos conflitos sociais, da organização associativa e das iniciativas culturais; no terreno da luta parlamentar e extraparlamentar, da ação e alianças partidárias; das eleições e assim por diante, perseguindo metas e projetando cenários para orientar seu agir nas conjunturas (PCB, 1958; 2007).

Em Furtado o intelectual com seus conhecimentos ocupam o centro da ação transformadora no contexto estatal ao redor da qual exerce o seu protagonismo. Manheimiano, o autor segue a ideologia nacional-popular da época.11 Os intelectuais continuavam exercendo papéis públicos em grande medida assimilando à sua cultura política a tradição demiúrgica da intelectualidade dos anos 1930 e 1940. (PÉCAUT, op. cit.). Só iriam exercer protagonismo próprio no novo lugar da sociedade civil quando passam a militar na Resistência ao regime de 1964 e durante a transição democrática dos anos 1980 (Idem).

O livro Dialética do desenvolvimento contém textos preparados, como foi referido, em pouquíssimo tempo entre setembro de 1963, após a tentativa fracassada de instaurar o estado de sítio no país, e janeiro de 1964, às vésperas da destituição do Presidente. Muito anos depois, o autor diria ser esse livro o seu testamento intelectual. Com esta “monografia”, como o chama (os capítulos seguem seus argumentos numa mesma direção), ele pretendia divulgar entre os jovens “um conjunto de ideias consistentes” fruto de suas “matutações” no Recife, aonde voltara para dirigir a Sudene logo depois de ter sido substituído por Santiago Dantas no Ministério do Planejamento. Pensava publicá-la só após o término do mandato de Jango, em 1965, visando marcar sua posição a respeito dos objetivos e da luta em que tanto se empenhara (cf. FURTADO, 1997a, p. 278), tendo sido, entretanto, o volume publicado em junho de 1964.

As novas reflexões desse livro viriam dimensionar o modelo desenvolvimentista anunciado em 1962. O seu capítulo “Dialética do desenvolvimento capitalista”, também já citado, apresenta o desenvolvimento nas sociedades capitalistas nas suas dimensões econômicas, das classes e da luta de classes, do exercício do poder, do marco institucional e suas flexibilizações, da democratização social e política, da máquina estatal e suas crescentes funções, da burocratização e da massificação da sociedade. (FURTADO, 1964a). Este modelo europeu, que em “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira” servira de referência para a formulação da estratégia desenvolvimentista, agora teorizado do ponto de vista formulativo, indica tensões no reformismo furtadiano, particularmente no que se refere ao papel dos grupos econômicos e sociais e ao terreno à sombra do Estado em que se desenvolvem, e à concepção de democracia do autor. Enquanto no capitalismo central, a classe econômica privilegiada revoluciona toda a formação social a partir da sociedade civil (cf. MARX e ENGELS, 1947-48; 1975) sob o impulso da luta de classes, aqui na condição de subdesenvolvimento se configura uma situação em que os atores sociais são débeis tanto nos estratos econômicos superiores como nos contingentes subalternos, cabendo ao poder executivo (o planejador democrático manheimiano) promover as mudanças do desenvolvimento econômico (FURTADO, 1962c).

Em outro texto do livro, “Projeções políticas do subdesenvolvimento”, Furtado se volta para a questão do quadro político e da possibilidade realista de mudança social na circunstância de subdesenvolvimento. Suas reflexões mais amadurecidas na chave da sociologia e da ciência política, como registra o próprio autor (FURTADO, 1964c) sugerem muito para aquilatarmos o sentido político da estratégia desenvolvimentista anunciada no artigo publicado em março de 1962 referida ao governo de João Goulart.

Em relação à oportunidade favorável no tempo de Jango, o reformismo furtadiano mostra-se problemático e arriscado quando visto por ele mesmo desde o equacionamento do subdesenvolvimento a partir da questão do predomínio das “grandes massas camponesas” nas suas estruturas sociais, como a do Brasil. O autor põe atenção particular nas repercussões desse dado básico no contexto urbano social e político. Mencionemos passagens que dão uma breve ideia da sua argumentação. A primeira se refere ao fato de que o setor capitalista, reproduzindo a dualidade da economia, cresce e “se realiza principalmente pela absorção de fatores tomados à economia preexistente e, sempre que isto convenha, pela absorção de novas técnicas” (Idem, p. 82). Em uma situação coetânea como esta, o grande reservatório de mão de obra posto à sua disposição alimenta-lhe o pouco dinamismo ao criar “uma força inibitória de todo o processo da luta de classes” (Ibidem). Via de regra, aduz Furtado, a classe dirigente acostumara-se “a elevadas taxas de lucro que jamais são postas em xeque pela luta de classes” (Ibidem).

Uma outra passagem relembra a tendência da “classe dirigente” de um país de economia subdesenvolvida a diferenciar-se nos grupos dos latifundiários, dos setores ligados ao comércio exterior e do grupo capitalista “basicamente apoiado no mercado interno” (Idem, p. 83). Seus interesses diversificados, em certo sentido se assemelham, anota o autor, aos conflitos entre a aristocracia rural, a grande burguesia financeira e a grande burguesia industrial no curso da constituição do capitalismo industrial na Inglaterra do século XIX, no qual uma autêntica luta de classes – entre assalariados e capitalistas – foi crescendo em importância e condicionou todo o processo social. Aqui, os conflitos entre aquelas elites não provocam efeitos progressistas: “Na ausência de um autêntico desafio dentro da própria estrutura subdesenvolvida, os grupos dominantes permanecem incapacitados para solucionar suas contradições internas, o que repercute de forma adversa no desenvolvimento social” (Idem, p. 83-84). Elas operam menos como estratos dirigentes, sendo propriamente facções que vão proteger seus interesses no aparato estatal, disputando a posse das suas estruturas. Nesse ponto, Furtado chama a atenção para uma terceira área social que ganha relevo com a crescente presença do Estado nas “estruturas subdesenvolvidas”: “Esse rápido aumento da máquina estatal, conjugado com o crescimento da produção de serviços em geral nas zonas urbanas – decorrência em grande parte da concentração da renda --, reflete-se numa forte expansão das classes médias assalariadas, concentradas nas zonas urbanas, com repercussões no plano político, de não pequena monta” (Idem, p. 84).

Essa debilidade das classes e a ausência de grupos com vocação hegemônica marcam a vida política: “O processo político em um país subdesenvolvido com as características indicadas tende a apresentar-se sob a forma de uma permanente luta pelo poder, entre grupos que compõem a classe dominante, em razão da extraordinária importância que tem a máquina estatal. Inexistindo um processo endógeno no sistema capaz de provocar a formação da consciência de classe da massa trabalhadora industrial,12 este grupo permanece tão disponível quanto os assalariados de classe média para ser trabalhados por ideologias da classe dominante, a serviço de suas facções internas em luta. Tais ideologias, conhecidas sob a forma genérica de populismo, têm como linguagem comum aquilo que no século XIX, se chamou de ‘socialismo utópico’, cuja essência está em acenar com formas de redistribuição do produto social, sem preocupar-se com a organização da produção” (Idem, p. 86).

O texto discorre sobre outras facetas do populismo que caracterizam uma circunstância disposta à eventualidade de processos de mudança social, porém portadora de grandes riscos. Citemos alguns desses traços. O populismo, para Furtado, é mais uma técnica de mobilização emergente em situações mais agudas da permanente disputa de poder: “O perigo do populismo deriva de que ele efetivamente logra provocar uma redistribuição da renda, em favor de certos grupos e em detrimento de outros. Ainda que o seja durante um período limitado de tempo. Desta forma, constitui uma poderosa arma nas mãos de uma fração da classe dirigente contra outras” (Ibidem). Furtado descreve outros traços negativos do populismo, o que inclui governos fortes e ditatoriais, perda de conquistas sociais e erosão da força renovadora dos trabalhadores (Idem, 86-87).

Essas considerações do começo de 1964 requalificam, em relação ao modelo de 1962, o papel dos trabalhadores numa estratégia reformista em contexto de populismo: “A consecução ou manutenção de um regime democrático aberto, em que as classes assalariadas podem organizar-se para lutar por objetivos próprios, deve ser considerada como condição necessária do desenvolvimento social em um país subdesenvolvido. É a partir desse ponto que se pode pensar em uma ação política para o desenvolvimento, pois o populismo somente poderá ser superado por movimentos surgidos dentro das classes assalariadas e conducentes à sua autodeterminação política. Com efeito, amadurecendo a consciência da classe trabalhadora e definindo-se com nitidez os seus reais objetivos, o populismo poderá, durante algum tempo, transformar-se em arma contra aqueles mesmos que o usam. As conquistas da classe trabalhadora através do jogo populista, se legítimas e orientadas por uma estratégia de longo prazo, poderão forçar posições básicas das classes dirigentes e criar situações irreversíveis no sentido do desenvolvimento social” (Idem, p. 88).

Considerações finais
Em janeiro de 1964, Furtado vê a experiência brasileira “ilustrativa” das possibilidades reformistas no quadro político da época de Jango, citando o Congresso Nacional que, mesmo tendo forte influência conservadora, havia votado o Estatuto do Trabalhador Rural e a regulamentação da remessa de lucros para o exterior “sob pressão de um jogo populista que o arrastou a momentos de pânico” (Idem, p. 88-89). Entretanto, essas conquistas podiam ser “destruídas por um passo em falso” facilitado, também diz o autor, aludindo ao sindicalismo urbano, “pela própria indefinição das classes trabalhadoras com respeito a seus próprios objetivos, colocando-se incondicionalmente a reboque de lideranças populistas” (Idem, p. 89). Nesse tempo de instabilidade e muita radicalização, outro passo em falso seria deixar que a ativação camponesa assumisse a forma de “técnicas revolucionárias de tipo leninista”. Furtado cita o “bom exemplo” das ligas camponesas que conseguiram transformar uma ação de tipo revolucionária na legalização das conquistas obtidas (Ibidem).13

Na última página do capítulo “Projeções políticas do subdesenvolvimento”, acima citado, também há duas passagens que dimensionam questões igualmente finais do livro A pré-revolução brasileira, em especial a questão estratégica da opinião pública e do protagonismo intelectual. Na primeira delas, vendo as coisas do começo de 1964, Furtado assim se refere à ação política renovadora: “O objetivo político a alcançar nos países subdesenvolvidos – isto é, o objetivo cuja consecução assegurará um mais rápido desenvolvimento econômico em uma sociedade democrática pluralista – consiste em criar condições para os assalariados urbanos e a massa camponesa tenham uma efetiva participação no processo de formação do poder” (Ibidem). Na outra, referindo-se ao distanciamento da “parcela da população com atividade política” em relação ao conjunto da nação, completa proposição dizendo que a ampliação das bases políticas do poder “é essencial para que (o país – RS) tome o seu rumo definitivo, com o custo mínimo para a coletividade, o processo de transformações sociais que já está em curso de realização”. (Ibidem). 

E em seguida, agora aludindo ao famoso Prefácio marxiano de 1859, assim termina o texto: “Não há nenhuma dúvida de que para nós se abriu uma época de revolução social. Resta saber se esse processo revolucionário se desenvolve sob a forma de atividade prática crítica, ou como a tragédia de um povo que não encontrou o seu destino” (Ibidem).

Por certo o autor propõe um reformismo com a vigência permanente das liberdades na contracorrente daquela época.14 A propósito da questão da democracia em Celso Furtado, já faz algum tempo, Vera Alves Cepeda trabalha, noutro registro, o pensamento político furtadiano, tendo publicado vários artigos, hoje de leitura obrigatória (CEPEDA, 2008; 2012; 2015). Mas há qualificações a fazer. A principal delas é que na argumentação de Furtado a favor da democracia nas suas formulações reformistas, tanto na sua primeira apresentação de 1962 quanto na versão acrescida das novas reflexões de Dialética do desenvolvimento, não transparece o valor que ele confere à democracia política e suas funções inelimináveis na transformação de sociedades abertas e plurais.16 Por um lado, o autor tem dificuldade em reconhecer a especificidade da política como tal, quando fala de ação política transformadora associada à ideia de nação como sujeito político (ver PÉCAUT, op. cit.). 

E, por outro, não atribui protagonismo privilegiado aos partidos políticos em um plexo de interesses e mediações diversas, terreno onde cumprem função tematizadora na formação da opinião pública e dos governos.16 Todavia Furtado chega a falar em reforma do sistema político da democracia representativa em outro capítulo de Dialética do desenvolvimento chamado “As causas econômicas da crise atual”.17

Entretanto, cabe registrar que posteriormente Furtado não se distancia dos textos aqui resenhados, ao contrário, na obra autobiográfica reproduz passagens inteiras de “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira” e sumaria os capítulos de Dialética do desenvolvimento, por exemplo. O sentido geral do seu reformismo democrático segue as viagens que empreende pelo mundo após 1964, como é o caso da primeira parada no Chile quando se solidariza com a revolução não dirruptiva de Allende e sobre a qual anos depois escreve na sua obra autobiográfica: “No Chile não ocorreu propriamente uma operação de “engenharia social”, como em Cuba ou nos países do Leste europeu, e sim uma tentativa de lançar-se em um reformismo social mais ou menos tumultuado” (FURTADO, 1997b, p. 232)
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Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

NOTAS
1Este artigo foi escrito para discussão no GP – CNPq “Pensamento social e cultura política” (UFRRJ).
2 O Governo surgiu da investidura de João Goulart na chefia do Executivo após a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, como estabelecia a Constituição de 1946. Ele havia sido eleito vice-presidente da república, mesmo que sua coligação partidária liderada pelo general Lott (PSD-PTB e outros partidos) tivesse sido derrotada no pleito de 1960. Em meio a grande crise, Jango foi empossado na Presidência da República sob o regime parlamentarista, então aprovado pelo Congresso Nacional.
3 O livro reúne os seguintes textos: “Da objetividade do economista”, “Necessidade de uma política de desenvolvimento”, “Renovação do pensamento econômico”, “A economia brasileira na metade do século 20”, “O módulo da economia colonial”, “Conquista dos centros de decisão”, “Emergência do sistema industrial diferenciado” e “O futuro como opção”.
4 Naquele livro de Furtado aparece o anúncio de títulos então já publicados pela editora, entre outros: Capitalismo, socialismo e democracia (Joseph Schumpeter), Estratégia do desenvolvimento econômico (Albert O. Hirschman), Mitos e homens (Raymond Aron), Democracia liberal (Massimo Salvadori), Economia marxista (Joan Robinson), O eu desconhecido (C. J. Jung), Socialismo e guerra (Edward Kardelj).
5 A observação de Furtado é esta: “... aí estão os supostos representantes do povo eleitos pelos empreiteiros de obras públicas, aí está a aliança da máquina feudal com as verbas orçamentárias produzindo parlamentares, que somente poderão sobreviver se forem instrumentos dóceis de seus financiadores” (Ibidem).
6 O livro citado Desenvolvimento e subdesenvolvimento reúne seis textos elaborados entre 1952 e 1960: “A teoria do desenvolvimento econômico” (1954), “O mecanismo do desenvolvimento” (1952), “O processo histórico do desenvolvimento” (1956), “Elementos de uma teoria do subdesenvolvimento” (1958), “O desequilíbrio externo nas estruturas subdesenvolvidas” (1958) e “Industrialização e inflação (Análise do desenvolvimento recente do Brasil”) (1960).
7 Vale citar esta passagem: “Se pretendêssemos sintetizar a contribuição das três correntes de pensamento referidas para o advento de um começo de pensamento econômico autônomo e criador, no mundo subdesenvolvido, diríamos que o marxismo fomentou a atitude crítica e inconformista, a Economia clássica serviu para impor a disciplina metodológica, sem a qual logo se descamba para o dogmatismo, e a eclosão keynesiana favoreceu melhor compreensão do papel do Estado no plano econômico, abrindo novas perspectivas ao processo de reforma social” (FURTADO, 1961 p. 13).
8 O próprio economista insiste em dizer que sua tese não era uma tese economicista: “Graças à ideia de centro de decisão pude escapar ao ilusionismo dos mecanismos econômicos, os quais impedem a muitos economistas de integrar os processos econômicos nos conjuntos sociais reais. (FURTADO, 1973; 1983).
9 Em seu livro Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação (1990), Daniel Pécaut descreve a cena intelectual da esquerda brasileira e latino-americana dos anos posteriores ao golpe militar de 1964. O autor registra que Furtado é um dos poucos a não radicalizar o estruturalismo econômico nas explicações dos processos sociais e políticos da época. Ver Santos, 2014.
10 Furtado fazia estas qualificações ao papel do Congresso Nacional: “mas retirando-se aos políticos o poder de discriminar verbas. Temos que dar meios ao Governo para punir efetivamente aqueles que malversem fundos públicos, para controlar o consumo supérfluo, e para dignificar a função de servidor do Estado” (Ibidem).
11 Na Introdução ao livro Dialética do desenvolvimento, datada de janeiro de 1964, Furtado se refere à responsabilidade do intelectual brasileiro “em nenhuma época tão grande como no presente”. Diz que “o intelectual é o único elemento dentro de uma sociedade que não somente pode, mas que deve sobrepor-se aos condicionantes sociais mais imediatos do comportamento individual. Isto lhe faculta mover-se num plano de racionalidade mais elevado e lhe outorga uma racionalidade toda especial: a da inteligência”. (FURTADO, 1964b).
12 Em tal contexto Furtado assinala que o processo de tomada de consciência de classe dos trabalhadores tende a ser lento. Entretanto, observa que na formação da sua própria ideologia pode haver “a influência decisiva dos dados da experiência histórica de outros povos e a contribuição interpretativa de intelectuais” (Idem, p. 85).
13 Aquela situação-limite expressa a questão da “dualidade da estrutura político-social” realçada no artigo de 1962: “A organização da massa para atuar dentro do jogo da luta de classes tendo por base objetivos que podem ser definidos em termos racionais, isto é, devem aparecer aos trabalhadores como viáveis em função dos meios que estão sendo mobilizados. O mesmo, entretanto, não se pode dizer com respeito à organização de uma massa que está excluída da própria atividade política. Neste caso, pode ser necessário apelar para mitos sorelianos. (Idem, p. 90). O autor exemplifica com a retórica de Julião da “guerra de guerrilhas” e da nova “Sierra Maestra”. (Ibidem).
14 José Antônio Segatto registra que um dos fatores básicos para o desfecho de 1964 foi que “nenhum dos responsáveis por elas (as reformas) tinha compromissos com a democracia, a não ser retóricos e e/ou como profissão de fé” (SEGATTO, 2014, p. 57).
15 Desde a Declaração de março de 1968 do PCB o campo da esquerda brasileira militante está posto diante da questão que o define em um país como o Brasil: aceitar sem reservas a democracia política como único caminho para o renovamento sustentável do país como é exemplo o marco institucional e programático trazido pela Revolução democrática que derrotou a ditadura em 1985: a Constituição de 1988.A propósito do tema, ver Vianna, 1988.
16 Caio Prado também vê os debates sobre os problemas brasileiros como fator importante para a criação de uma cena nacional favorável às mudanças sociais. Entretanto, em 1962, considera os partidos políticos protagonistas importantes desse tipo de mobilização, reclamando, porém, da superficialidade das suas ideias e programas que os incapacitava de formar governos “político-administrativos”. Também reclamava do governo de Jango por incentivar agitações em função de interesses personalistas, que desviavam o foco das “forças progressistas e democráticas” (PRADO JR., 1962; 2007).
17 A referência completa é esta: “O Brasil da fase presente é, portanto, um país em transição. O seu sistema político, de democracia representativa, tem demonstrado um certo grau de flexibilidade. Contudo, essa flexibilidade tem sido utilizada ao máximo, no período recente, criando-se um clima de suspense com respeito à capacidade do sistema para suportar novas tensões. O maior obstáculo a uma transição gradual está em que a reforma mais urgentemente necessitada – aquela que daria maior capacidade de auto-adaptação ao sistema e facilitaria a introdução de outras – resulta ser a de mais difícil realização: a reforma política, visando a aumentar a representatividade dos órgãos que atuam em nome do povo. Uma vez que se alcance esse grau mais alto de efetiva democracia, as demais modificações do marco institucional podem ser introduzidas sem maiores tensões para o sistema político” (FURTADO, 1964d, p. 110).

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FONTE: “Reformismo e camponeses no pensamento de Celso Furtado, revista Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, abril de 2016.

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