segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Demétrio Magnoli - O dilema do impeachment

- O Globo

Legitimidade fornecida pelo voto popular tem limites, definidos pelas leis mais vitais

O impeachment de Donald Trump estava fora dos planos dos líderes do Partido Democrata. A mudança de curso não se deveu às pressões incessantes da ala esquerda do partido, mas à notícia explosiva de que o presidente chantageou o governo da Ucrânia na tentativa de manchar a reputação de Joe Biden, possível antagonista nas próximas eleições. Não havia outra saída: era deflagrar o processo ou renunciar à última linha de defesa da democracia.

O impeachment foi inscrito na Constituição dos EUA — e replicado na lei maior de diversas nações — para remediar atos dos governantes que ameaçam os alicerces da polis . Trump classificou a iniciativa democrata como “um golpe destinado a tirar o poder do povo”, num curioso eco do grito lançado pelo PT. A mensagem veiculada pelo instrumento do impeachment é essencialmente antipopulista: a legitimidade fornecida pelo voto popular tem limites, definidos pelas leis mais vitais. Em tese, os parlamentares jamais usarão o remédio final como arma nas disputas partidárias normais.

Até o escândalo da Ucrânia, a sombra agourenta do impeachment de Bill Clinton protegeu Trump. No caso de Clinton, a maioria republicana na Câmara conduziu o processo a partir de desvios menores ligados ao affaire Monica Lewinsky. Os eleitores identificaram a natureza partidária da estratégia e puniram os republicanos nas eleições legislativas de 1998.

O impeachment de Dilma Rousseff situa-se a meio caminho entre os casos de Clinton e Trump. A violação da lei orçamentária pelas pedaladas fiscais, um desvio menor à luz de padrões brasileiros, provavelmente não redundaria no afastamento do cargo. Mas, na encruzilhada fatal, Sergio Moro deu publicidade ao diálogo no qual a presidente alçava Lula ao Ministério com o aparente propósito de obstruir procedimentos judiciais. Então, o chão ruiu sob seus pés.

Formalmente, Dilma caiu da bicicleta. De fato, foi destronada por um ato de obstrução de Justiça, crime maior. Contudo, atrás do apoio popular majoritário ao impeachment, estava a crise econômica gerada por insustentáveis políticas voluntaristas, numa atmosfera envenenada pelo escândalo de corrupção na Petrobras. O impeachment pertence ao universo da política: em sistemas democráticos, o presidente só é derrubado quando perdeu as condições mínimas para governar.

Clinton conservava condições para governar; Dilma, não. Trump tem maioria no Senado e apoio popular ao redor de 40%. O processo de impeachment pode modificar o cenário — mas, até o momento, ele mantém condições para governar.

O dilema de fundo, não poucas vezes, é optar entre os princípios e as conveniências. Adotando a estratégia do impeachment, os democratas correm um risco eleitoral similar ao dos republicanos que colocaram Clinton na alça de mira. Mas Trump incorreu em crime maior. Pedir o impeachment é, no caso, uma questão de princípios. Se Trump não for processado, o Congresso estará consagrando um perigoso precedente: daqui em diante, os presidentes ficariam autorizados a usar o poder do cargo para atentar contra a alternância de governo. Nessa hipótese, a lei do impeachment se converteria em letra morta.

De Trump a Wilson Witzel. O assassinato de Ágatha Félix, a quinta criança morta por “balas perdidas” disparadas por policiais em favelas do Rio, é a prova definitiva de que o governador representa uma ameaça à vida dos cidadãos. Sob o estímulo explícito de Witzel, policiais operam na “outra cidade” como se estivessem em teatros de guerra, em terra estrangeira, atirando antes de perguntar e escondendo seus crimes no álibi mentiroso do confronto.

O governador cumpriu sua promessa de campanha, rebaixando a polícia ao estatuto de esquadrão da morte. Seguindo a ilegal “lei do abate”, as polícias fluminenses são responsáveis por 40% do total de homicídios que ocorrem na cidade do Rio. A Assembleia Legislativa tem a obrigação de abrir processo de impeachment contra Witzel, em nome do bem maior, que é a vida. Não fazê-lo é conferir à polícia o direito de matar — desde que os assassinatos fiquem circunscritos às favelas.

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