Em
plena crise econômica, a maior em um século, o capitalismo antissocial, que já
reformou as leis trabalhistas e da Previdência, tem larga avenida pela frente
Vai
aí um teste para quem gosta de economia. Nos cinco parágrafos abaixo estão,
entre aspas, declarações de um grande economista brasileiro. Tente descobrir
quem é, mas sem olhar para baixo no texto, onde aparece o nome dele.
“Inflação
é modificar a distribuição de renda. A gente pensa que é modificar os preços.
Pode-se ter inflação com os preços estáveis e a renda se modifica. Numa
economia de mercado, os preços estão se modificando a todo o instante. Mas se
alguém tem a possibilidade de comandar essa modificação de preços a seu favor
já criou a pressão inflacionária. Se outros agentes aceitam a perda de renda de
braços cruzados, a economia absorveu. Se resistem com pressão sindical ou
mecanismos de correção monetária, o negócio vai adiante.”
“Atualmente, na economia brasileira, a iniciativa de investimento está na mão de grupos privados e essencialmente estrangeiros. Os investimentos de vanguarda, que representam a introdução de produtos novos, os mais rentáveis, aqueles que colocam a economia brasileira em dia com as economias em expansão lá fora, estão todos na mão de grandes grupos privados. Estes, se buscam os seus próprios interesses, terão que insistir nesse modelo. É muito melhor para uma empresa que está lançando um produto novo em 30 ou 50 países introduzir seus ‘blue prints’ imediatamente no Brasil do que consultar as necessidades reais da população brasileira. Isso é óbvio e qualquer industrial estaria totalmente de acordo comigo, porque isso reduz seus custos. Num plano puramente abstrato, o problema teria solução desde que houvesse uma vontade política no Brasil para provocar uma reciclagem progressiva do sistema de produção e uma certa disciplina nos padrões de consumo.”
“Não
se pode imaginar uma sociedade realmente aberta, no quadro de um
‘laissez-faire’ econômico [no Brasil] hoje em dia porque a renda irá se
concentrar muito mais e as tensões sociais vão renascer, por um lado, e as
pressões inflacionárias, por outro. Ou seja, o verdadeiro debate está em torno
do modelo econômico. Se não houver um modelo econômico visível, tanto nas fases
de conjuntura favorável como nas desfavoráveis, os antagonismos sociais tendem
a agudizar-se numa sociedade aberta e o sistema entra numa espécie de desgaste
em que o consenso político é praticamente impossível. O que é fundamental no
sistema econômico brasileiro é que ele, pelo fato de estar submetido a uma
lógica que corresponde ao nível de acumulação alcançado por países muito mais
ricos, tende a ser antissocial. A principal crítica que se faz ao capitalismo
no Brasil é fundamentalmente essa: ele é muito mais antissocial do que o
capitalismo tem sido em outros países.”
“Eu
conheço sistemas capitalistas muito diferentes. Chego do Japão agora, por
exemplo, onde o diferencial de salários é mínimo. Não existe o supérfluo como
estímulo e nenhum sistema é internacionalmente mais competitivo que o deles, os
japoneses. Há também o sistema sueco, para citar um muito distante do nosso,
porque tem um grau de acumulação muito grande, um grau de avanço político muito
grande, que não está baseado no supérfluo para criar estímulos.”
“Não
acredito que as forças sociais criem alguma coisa por geração espontânea. A
sociedade dos homens é em grande parte feita pelas ideias de indivíduos ou
pelos intérpretes que ela consegue em determinado momento. Eu nunca diria, por
exemplo, que foi indiferente aos Estados Unidos ter ou não ter um tipo como
Jefferson. Por outro lado, não se explica a industrialização precoce dos
Estados Unidos sem Hamilton [1755-1804]. Quando se lê hoje em dia o que ele
escrevia já naquela época e como ele conseguiu se libertar do pensamento
liberal tal qual existia na Inglaterra, mesmo sendo discípulo de Andam Smith,
chega-se à conclusão de que realmente essas coisas pesam. Não foi totalmente
indiferente a Esparta e Atenas que a primeira tivesse um Licurgo, e a segunda,
um Sólon.”
S;
e você chegou até aqui e costuma ler sobre economia, provavelmente já
adivinhou: as declarações são de Celso Furtado, grande economista e intelectual
brasileiro do século XX, morto em novembro de 2004. Os trechos não estão em
livros de Furtado - o mais famoso deles é “Formação Econômica do Brasil”. São
de uma histórica entrevista que ele concedeu à “Folha de S. Paulo”, em agosto de
1976, da qual este jornalista teve a sorte de participar, junto com Luiz Carlos
Bresser-Pereira e Eduardo Suplicy.
O
curioso é que, passados 45 anos, declarações feitas durante a ditadura militar
possam parecer atuais. No caso da inflação, ocorre hoje uma intensa modificação
de preços e, claramente, com aumentos de até três dígitos, alguns setores têm
conseguido usar a pandemia para comandar essa modificação a seu favor.
Há
45 anos, na opinião de Furtado, a principal crítica que se fazia ao capitalismo
no Brasil era sobre sua característica antissocial, muito maior que em outros
países. Nada muito diferente de hoje. O diferencial de salários continua sendo
bem menor em economias capitalistas como Japão, Alemanha, Suécia e muitas
outras.
A
adoção de uma política econômica radicalmente liberal promove ainda maior
concentração de renda. Isso pode fazer crescer tensões sociais e pressões
inflacionárias que tornem o consenso político impossível. Ao mesmo tempo, há
escassez e descrédito de lideranças, tanto na política quanto na economia, o
que trava os avanços porque, acreditava Furtado, as forças sociais não criam
nada por “geração espontânea”.
Celso Furtado foi diretor do BNDES, na época BNDE, criou a Sudene a pedido de Juscelino Kubitschek e foi o primeiro ministro do Planejamento do país, em 1962. O BNDES está sendo desmontado desde 2016 e sofreu recente ataque que lhe tiraria mais recursos por meio de um “jabuti” incluído na PEC Emergencial. A Sudene, extinta no governo Fernando Henrique e recriada no governo Lula, murchou. O Ministério do Planejamento não existe mais. Em plena pandemia que provoca a maior crise econômica em um século, o capitalismo antissocial, que já reformou as leis trabalhistas e da Previdência, tem uma larga avenida pela frente. E avança sob risco de acirrar tensões sociais e ameaçar a democracia.
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