Todo
mundo viu o último chilique de Bolsonaro, na quinta-feira, 4 de março. Faz e
avança — abrigando crimes de responsabilidade em seus pitis — porque nunca
formalmente cobrado. Dirá um otimista — para quem o mito seria somente um
fanfarrão — que ele estica a corda para logo soltá-la. Sim. Mas estará nosso
tecido social — em tão esgarçada circunstância, sob a tensão de um espírito do
tempo autoritário — com fibras para essa sucessão de estresses? O cético
acrescentará que, uma vez relaxada, a corda nunca volta ao viço anterior; o
fanfarrão — um populista autocrático cujos ataques influem — ganhando terreno,
adiantando seus danieis-silveiras, sobre o chão da ordem política.
Tem
sido assim há dois anos. E o homem vai à vontade. No último dia 6, fez um ano
desde que afirmou ter provas de que a eleição de 2018 fora fraudada. Um
investimento, de natureza golpista, contra o sistema eleitoral. E também um
teste da disposição de Supremo e Congresso à acomodação. Omissas as
instituições, captou o recado: convite a que comparecesse a uma manifestação
que alvejaria STF e Congresso.
O faniquito da última quinta, como os outros, foi autorizado pela covardia institucional. Outros virão. Cada um com suas razões. A da semana passada, uma obviedade. Fôramos informados de que Flávio Bolsonaro — beneficiado por um financiamento que transformara banco em pai — havia comprado a mansão de R$ 6 milhões. O show do presidente pretendeu desconcentrar as atenções. Mas teve motivações adicionais. Todas derivadas de nova leva de imposições do mundo real sobre o discurso bolsonarista. (Há um ano, Bolsonaro projetava em 800 o número de brasileiros a morrer pela peste; e Guedes falava em domá-la com R$ 5 bilhões).
Afinal,
na mesma semana passada, o governo, sob pressão dos governadores, anunciou que
compraria imunizantes de um laboratório que, havia meses, desqualificava. E
desqualificava com embustes como o argumento de que haveria impeditivos legais
para que assumisse as responsabilidades em caso de efeitos adversos da
aplicação. Uma mentira. A mesmíssima cláusula não impedindo que se assinasse
contrato com a AstraZeneca.
Esculhambou-se
essa vacina também porque exigiria uma rede de frio mui complexa. Refiro-me ao
imunizante da Pfizer; aquela farmacêutica que, em agosto de 2020, oferecia 70
milhões de doses ao Brasil — para entrega a partir de dezembro, com 1,5 milhão
de doses já naquele mês e outro volume igual até fevereiro. Mas que foi
difamada pelo governo. Governo que ora anuncia a compra de 100 milhões de doses
produzidas pelo laboratório — a ser entregues, contudo, a partir do segundo
trimestre de 2021. (Governo que, fosse por seu exclusivo esforço, só teria
oferecido — até hoje — quatro milhões de doses à população.)
Bolsonaro
não quis ter vacinas já em dezembro, três milhões de ampolas até fevereiro.
(Preferiu que o “meu Exército” — o dele — fabricasse milhões de cloroquinas com
dinheiros do combate à pandemia.) O mesmo sujeito que agora grita — mandando o
cidadão procurar vacina na casa da mãe — que “não tem pra vender no mundo”.
Tinha. Não quis. Mas o mundo real se impôs. (A mamãe Bolsonaro já foi vacinada.)
Como se impôs quando teve de adquirir — depois de haver afirmado que não o
faria — a vacina de Doria; sem a qual não haveria vacinação em curso neste
país. (A mamãe Bolsonaro foi imunizada com a vachina.)
O
mundo real se impõe. E impôs a Bolsonaro mais um cavalo de pau; correndo para
comprar vacinas — Covaxin e Sputnik (de lobby parlamentar espantoso) — ainda
desprovidas de certificação pela Anvisa, outrora a condição fundamental,
segundo o presidente, para que o povo não fosse cobaia e para que ele não fosse
irresponsável com o dinheiro do povo, firmando contratos com laboratórios cujos
imunizantes ainda não estivessem liberados pela agência. O que mudou?
Bolsonaro
nega — na prática — o discurso de Bolsonaro; o que castiga a base social
extremista difusora de seu negacionismo. Foi também para agradar a esses que
rebolou na quinta. O bolsonarismo depende de gerar inimigos. Já foi a vacinação
em massa; a respeito do que se inventou uma obrigatoriedade que invadiria
nossas casas para nos imunizar à força. Mas o mundo real se impôs. E o governo
não apenas compra as vacinas malditas como passou a defender, ontem, Guedes por
porta-voz, a vacinação em massa.
A
imposição do mundo real obriga Bolsonaro aos mimimis. Pura satisfação a seus
reacionários, para cujo agrado, sempre que aperta, convoca outro velho inimigo
imaginário: o lockdown. Que não existe no Brasil. Mas contra o que — a tirania
de governadores que nos tomam o direito de ir e vir — lutam os patriotas
defensores da liberdade. Batalha pela qual o presidente pode até colocar o “meu
Exército” na rua — ameaçou. Aliás, um dos motivos para a pregação
armamentista-miliciana de Bolsonaro: que o cidadão possa se proteger de medidas
legais decretadas por governantes legitimamente eleitos, esses ditadores.
“Mas
onde vai parar o Brasil se nós pararmos?” — perguntou o presidente em meio ao
fricote.
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