Convencionou-se
dizer que “crianças abandonam a escola”, quando o certo seria dizer que elas
são “arrancadas da escola”, por um conjunto de forças: pobreza da família,
inospitalidade dos prédios, descontinuidade por interrupção das aulas,
desmotivação familiar ou dos professores, equipamentos obsoletos, métodos
ultrapassados, falta de perspectiva de futuro, merenda ruim, desincentivo ao
estudo. Tudo se passa como se o Brasil conspirasse para sequestrar as crianças
para fora da escola. Isto acontecia no século XIX, nos Estados Unidos, contra
as crianças negras.
Por
quase um século, aquele país foi dividido entre estados escravocratas no Sul e
abolicionistas no Norte, com permanente fuga de escravos em busca da liberdade
do outro lado da fronteira. Havia rede de apoio aos fugitivos, da mesma forma
que havia redes de políticos, advogados, policiais, que agiam no sentido
contrário, sequestrando afro-americanos no Norte para levá-los de volta ao Sul.
O “Clube do Sequestro”, como ficou chamado o mecanismo que fazia este processo,
tinha agentes que retiravam crianças negras das escolas, e as levavam para
juízes que autorizavam o envio para seus senhores, no Sul.
Ao conhecer a maldade destes sequestradores organizados, percebe-se que isto é feito no século XXI com nossas crianças que abandonam a escola e caem na escravidão que aprisiona e devora os sem educação. No Brasil não é necessário “Clube de Sequestro”, porque as condições sociais e educacionais forçam as crianças a abandonar a escola. Agimos como o “Clube do Sequestro” norte-americano, levando estas crianças à escravidão do desemprego, baixos salários, despreparo para enfrentar e usufruir do mundo moderno.
Os
sequestradores americanos eram movidos por ganhos pessoais, a recuperação do
patrimônio do proprietário e os honorários aos membros do “clube”. No Brasil,
somos sequestradores sonos, com a hipocrisia de ignorar o analfabetismo como
uma algema mental e a falta de educação como escravidão; não tiramos a criança
da escola com nossos braços, apenas assistimos que ela fuja da escola sem
qualidade. Fecham-se os olhos, deixam-se que elas se condenem, escondendo que
se tira proveito disto.
A
parcela que concentra a renda e a educação usufrui do trabalho com baixos
salários dos que não estudaram: pedreiros que fazem suas mansões, vendedores
nas praias, cuidadores de carro, empregados domésticos. O abandono das crianças
e das escolas se explica porque a má educação é uma trincheira da escravidão
ainda não plenamente abolida.
Para que
os ex-escravos não se libertem plenamente, não se assegura boas escolas para
eles nem para seus filhos. Aqui não fogem para Estados abolicionistas no Norte,
mergulham no mar da deseducação e continuam escravas, servindo aos seus
sequestradores sonsos. Esta é a lógica da perversa desigualdade escolar, que
condena nossas crianças a abandonarem a escola, como fazia o “Clube do
Sequestro” nos Estados Unidos, no século XIX. No lugar de trazer de volta para
antes de 1888, simplesmente fechamos os olhos à fuga das crianças em direção à
escravidão moderna.
Mas além
da perversidade sonsa, somos tolos, porque não medimos o custo do sequestro
para todos os brasileiros. Cada criança que abandona a escola provoca uma perda
para o país e, portanto, para cada brasileiro.
Comparando
com países que cuidaram da educação de suas crianças, como a Coreia do Sul, pode-se
estimar que o PIB brasileiro seria o dobro do atual se na infância nossos
trabalhadores não tivessem sido sequestrados para fora da escola. Fazendo o
Brasil mais pobre do que seu potencial permite, tanto quanto a escravidão nos
amarrava no século XIX. Além desta perda, a falta de educação exige gastos
gigantes com assistência social, porque os sequestrados na infância não são
capazes de se manter na vida adulta. Sequestramos crianças negando-lhes futuro,
e todos perdem o que elas poderiam oferecer ao Brasil se tivessem recebido boa
educação.
Somos sequestradores sonsos individualmente, ao explorarmos as crianças sequestradas quando adultas, e tolos socialmente, ao impedi-las de se prepararem para construir um país moderno que beneficiaria a todos.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília
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