Anulação
não realiza juízo sobre Lula, Moro ou a presença ou ausência de provas no
processo
Por
mais complexa que seja a elegibilidade de Lula sob a perspectiva política,
a decisão que anulou as condenações do petista na
Operação Lava Jato é bastante simples do ponto de vista
jurídico.
Essa
ambiguidade é central para entender a perplexidade que ela promove. Ela não
realiza nenhum juízo sobre Lula ser culpado ou inocente, sobre a imparcialidade
ou parcialidade de Sergio Moro ou sobre a presença ou ausência de provas no
processo. Trata-se de algo muito mais objetivo. O argumento é que Lula só poderia ser julgado pela
Lava Jato de Curitiba se suas ações tivessem alguma relação direta com o que
era investigado pela Lava Jato.
Esse é um pilar essencial do Estado democrático de Direito: ninguém pode escolher o juiz que lhe julgará e nenhum juiz pode escolher quem quer julgar. Na linguagem jurídica, essa orientação é chamada de “princípio do juiz natural”. É um mecanismo para coibir tanto a corrupção de juízes quanto a perseguição por parte dos magistrados. Como regra, as ações são julgadas por processos aleatórios de sorteio e distribuição.
Esse
processo de distribuição pode ser ignorado no caso de ações judiciais
profundamente conectadas entre si. Seria o caso de um juiz que pode reunir sob
seu julgamento as ações de diferentes condôminos contra um determinado ato de
um mesmo condomínio. É o caso de um juiz que pode reunir sob si todos os casos
que envolvam a corrupção realizada de forma sistemática, por uma série de
agentes, em uma determinada estatal.
Era
exatamente esse o caso da Lava jato de Curitiba. Após um processo inicial de
indefinição, estabilizou-se que a Lava Jato investigava o esquema de corrupção
envolvendo construtoras e a Petrobras.
Foi
em 2015 que o ministro Teori Zavascki, inegável aliado da operação, determinou
que a força-tarefa de Curitiba não poderia investigar a corrupção da
Eletronuclear, por respeito ao princípio do juiz natural. Na época, a medida
foi chamada de “fatiamento” da Lava Jato, mas era uma organização muito simples
de limites que qualquer investigação tem que obedecer. Desde então foi fixado
claramente que a Lava Jato de Curitiba não poderia investigar e nem julgar
fatos ou pessoas que não tivessem um vínculo direto claramente demonstrado de
envolvimento com a corrupção da Petrobras para favorecimento de determinadas
empreiteiras em contratos de obra pública.
É
por esse motivo que a decisão é simples do ponto de vista jurídico. Foi
aplicada uma orientação de 2015. Sem a demonstração ou indício de conexão clara
e direta de Lula com a corrupção da Petrobras, ele não poderia ter sido
processado e julgado por Curitiba. No entanto, a perplexidade, tanto para
defensores quanto críticos da medida, resta em compreender por que essa decisão
foi tomada agora.
De
um lado, se a nulidade do processo é tão simples e evidente, como justificar
que Lula tenha sido impedido de participar das eleições de 2018 por um processo
claramente viciado? De outro, se a nulidade é realmente tão simples e evidente,
como explicar que a investigação, processamento e condenação de Lula tenham
sido chancelados por diversas esferas do Judiciário? Há insatisfação tanto à esquerda quanto à direita.
Não
é possível entender as decisões envolvendo Lula sem contextualizar o impacto da
Lava Jato no Judiciário como um todo. Desde 2015, o destino do Supremo Tribunal
Federal esteve entrelaçado com os rumos da operação e, desse modo, com o da
prisão e liberdade de Lula. Foram anos em que o próprio STF endossou teses
inusitadas e heterodoxas, na maioria das vezes para reforçar as ações da
operação.
Durante
esse período, a Operação Lava Jato tomou uma série de decisões arriscadas da
perspectiva jurídica. Medidas que demandavam longos argumentos jurídicos para
defender que era possível realizar ações que até então não eram consideradas
juridicamente possíveis. Uma boa parcela do Judiciário, e o próprio STF,
embarcou na mesma toada. O desejo de protagonizar o combate à corrupção se
demonstrou mais forte do que o respeito a limites do devido processo legal e a
algumas garantias básicas.
Foi
nesse momento que o Supremo Tribunal Federal criou, por exemplo, a
possibilidade de suspensão cautelar de mandato de representantes eleitos,
condições inusitadas de prisão de parlamentares, impedir a realização de
entrevistas, proibir a indicação de ministros de Estado.
Porém,
com o enfraquecimento da operação, ficou cada vez mais difícil editar ou mesmo
manter esse tipo de decisão. Uma série de ações da Lava Jato passaram a ser
anuladas pela aplicação simples da legislação processual, sem contorcionismos
argumentativos. Os propalados golpes contra a Lava Jato pareciam muito mais um
retorno a um estado de previsibilidade.
A
anulação das condenações de Lula parece encerrar esse grande ciclo de
imprevisibilidade e decisões inusitadas movidas pela agenda da moralização da
política ou combate à corrupção. Retomar o processo em outros termos, com o
desfecho que for, daria a oportunidade de que o país inicie um processo de fazer
as pazes com o devido processo legal, de recuperar o pacto civilizatório de
exercer o poder de punição dentro dos limites da racionalidade e fora das
ânsias do desejo. No entanto, nada disso pode prosperar se não conseguirmos
entender por que essa decisão só foi tomada agora.
*Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP e coordenador do Supremo em Pauta
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