Folha de S. Paulo
A hipérbole de abuso judicial sistêmico é
ideia fora de lugar
Atribuída à Rui Barbosa, a afirmação de que
a pior forma de ditadura é aquela exercida pelo poder Judiciário é repetida sem
que, aparentemente, ele a tenha proferido. E mais: sem que ela seja consistente
com sua visão das instituições. A expressão não faz sentido histórica ou
conceitualmente; salvo como hipérbole para algum ativismo judicial e
desacertos.
O agente do abuso do poder nos sistemas políticos modernos é o ocupante do Executivo, e em algumas raras situações, os corpos legislativos. Nos sistemas políticos pré-modernos —regimes sultanísticos e autocracias dinásticas— há uma indiferenciação de poderes; neles “ditadura togada” sequer faria sentido. Nas democracias, o abuso —quando ocorreu e produziu degeneração— deveu-se invariavelmente à usurpação pelo Executivo de funções judiciárias e legislativas.
O arbítrio do Judiciário não é outra coisa
senão a longa manus do Executivo. Sem acesso às armas ou ao cofre, o Judiciário
é o poder “menos perigoso” na apta expressão de Hamilton. Entre nós a
crítica de Nelson Hungria durante a crise do governo Café Filho, recriminando
os que pareciam “supor que o Supremo Tribunal, ao invés de um arsenal de livros
de direito, dispõe de um arsenal de obuses e de torpedos”, é exemplar. Como o é
também sua boutade: deparando-se com uma “insurreição, tudo que a Corte pode
fazer é expedir mandado para cessá-la”.
Em regimes presidencialistas, o Judiciário
adquire forte protagonismo e independência apenas em períodos de governo
dividido, quando o Executivo é minoritário nas duas casas. A fragmentação de
poder político impede uma ação concertada do executivo para interferir
na Corte.
O Judiciário tipicamente não tem incentivos
para tomar decisões que se distanciem da preferência majoritária mediana devido
ao risco associado à opção nuclear: o descumprimento de suas decisões. Esses
incentivos tendem a levar à autocontenção e ao cultivo de “virtudes passivas”.
Mas o STF não é ator monolítico nem os
atores têm informação completa sobre os demais jogadores, alguns dos quais com
preferências extremas.
O equilíbrio é, portanto, instável. O
fundamental aqui é que há vários atores interessados em que as decisões sejam
acatadas; esta é uma demanda sistêmica e não institucional do Judiciário. Ela
será mais intensa quanto mais fragmentado o poder
político e consolidada a democracia.
Se a ditadura imaginária do Judiciário não faz sentido para o jogo da separação de poderes, a hipérbole vale para escolhas morais coletivas. Para minorias com preferências intensas pode até parecer tirania da maioria. E também, é claro, para desacertos e (variadas) disfuncionalidades da Corte.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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