quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Conrado Hübner Mendes* - Corrupção bolsonarista, capítulo 8

Folha de S. Paulo

O significado de 'legalização das milícias' e o 'valor' das armas

Sabe-se há 30 anos que não há proposta de Bolsonaro para o Brasil que não namore a morte. Desde "matar uns 30 mil" até autorizar polícia a chacinar pobre sem satisfação nem luto: seu repertório se bastava nisso. Deus e "kit gay" vieram depois, quando atinou virar presidente e abraçou comerciantes da religião. Encontrou um Deus com sanha arrecadatória.

Demos pouca atenção a outra ideia que se deixava ofuscar pelas propostas de morte: a "legalização das milícias". Se procurar texto do cérebro bolsonarista que explique a iniciativa, encontrará falas parlamentares de Jair e Flávio. E muito jornalismo declaratório que citava discursos, mas não indagava sobre o conceito.

Flávio resumiu: "As classes mais altas pagam segurança particular, e o pobre, como faz para ter segurança?" A Constituição promete direito à segurança pública. O bolsonarismo oferece arma e milícia. Se miliciano cobrar "tarifa", o bolsonarismo legaliza o pagamento isento de imposto. A vida miliciana está aberta a empreendedores. Dispensa concurso.

Depois de anos de governo, confirmamos que legalizar milícias não significa trazê-las para dentro da lei, no sentido formal de "legalizar". Legalizar aqui sugere "deixar rolar" na informalidade onde o Estado de Direito não entra. Entra milícia extorquindo e tacando terror em inadimplentes. Chega polícia disparando "bala perdida", a metáfora macabra da irresponsabilidade estatal.

O contrato miliciano estrutura entidade paramilitar, parapolicial, parajurídica. Paira além da lei.

O que mais liga a corrupção bolsonarista a milícias? Não apenas a família que operou negócios com milicianos desde pelo menos 2007. O business abrangia construções em área de soberania miliciana, gabinetes povoados por Queiroz, esposa e filhas; Adriano da Nóbrega, esposa e mãe. "Rachadinhas" lubrificavam esquema de ascensão patrimonial familiar.

A Presidência abriu outra etapa. Com caneta para afrontar o legislador, o governo editou normas jurídicas em série para esvaziar a lei do Estatuto do Desarmamento. "Fomos ao limite da legalidade", disse Jair, consciente da usurpação.

As normas, por um lado, ampliaram possibilidades de aquisição de armas e munições; por outro, dificultaram rastreamento e identificação. E liberaram geral para auto declarados "caçadores, atiradores esportivos e colecionadores" (CACs). O exército de CACs já supera o número de policiais e de militares no país.

Vendido como pacotaço da liberdade, o programa faz outra coisa com a chancela das Forças Armadas: facilita escoamento de armas para milícias e tráfico, e reduz capacidade estatal de investigar e resolver crimes com arma de fogo.

PCC e Escritório do Crime ganham armas "legais". Empresas de arma, que têm Eduardo Bolsonaro como lobista e garoto-propaganda, ganham dinheiro. Receita da Taurus subiu mais de 200%. Glock, Sig Sauer e Caracal também respiram hoje com mais "liberdade" por aqui.

O que fez o STF? Fachin e Weber deram liminares relevantes, mas limitadas. Toffoli e Fux, presidentes, aceitaram malandragens revogatórias de regras em véspera de julgamento e reedições subsequentes. Caíram no drible da vaca (ou fraude processual). Moraes demorou, mas votou em ação que há 10 meses dormita na gaveta kassiana. E Kassio é CAC.

O que se pode dizer sem erro: entre omissões, demoras e obstruções, STF é responsável por não conter o acelerado processo de armamento. Suspendeu algumas regras, outras centrais seguem vigentes. Exemplo: civis autorizados a comprar 180 mil balas e 60 armas (mas só 30 fuzis...) sem provar necessidade.

Poderíamos discutir quão mais inseguros e menos livres estamos com a proliferação de CACs e fuzis de guerra. Mas esse texto trata de corrupção, não de segurança. Bolsonaro pede grito por liberdade e legítima defesa. Não contou sobre dinheiro do crime organizado, do tráfico e de fabricantes de armas. Disfarça corrupção com filosofia política masturbatória e hipnótica.

A "República das Milícias" (livro de Bruno Paes Manso) não é república, pois coisa pública não há. Espolia e violenta comunidades periféricas na cidade, no campo, na floresta. A corrupção estará armada "legalmente" enquanto durar a cumplicidade do STF.

"Um povo armado não será escravizado"? "A verdade vos libertará"? O que se sabe é que povo idiotizado sequer notou quem lucra com isso. E quem morre. Entorpecido pela política do pânico e circo, não percebe que o contrato miliciano enriquece seus sócios. Dessa sociedade anônima e sangrenta a família presidencial é acionista.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

3 comentários:

Anônimo disse...

Miliciano defende miliciano! Simples assim... E a familícia Bolsonaro é o exemplo máximo: todos milicianos, todos enriquecendo, todos se protegendo! A FAMILÍCIA presidencial é acionista MAJORITÁRIA desta sociedade anônima e sanguinária! Como diz o miliciano mentiroso e genocida: "Comprem armas, não comprem feijão"!

Anônimo disse...

Miliciano ex-vereador Jerominho fuzilado hoje no Rio... Miliciano também ataca miliciano... Será que Bolsonaro está envolvido na guerra interna das milícias cariocas? Ou a familícia Bolsonaro paira acima delas?

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artido de Conrado Mendes,como sempre.Só um adendo,o ''kit-gay'' sempre foi fixação de Bolsonaro,bem antes dele ser presidente.