O Globo
Remover servidores é prerrogativa dos
ministros e dos presidentes. Satanizá-los antes da remoção é coisa de bruxos
Estimado colega,
Daqui a quatro dias Vosmicê vai para a
cadeira que eu ocupei, como ministro das Relações Exteriores, nos borrascosos
anos de 1964 a 1966. Daqui onde estou, sei que estão armando uma caça às bruxas
no Itamaraty. Remover servidores é prerrogativa dos ministros e dos
presidentes. Satanizá-los antes da remoção é coisa de bruxos. Removê-los depois
de terem sido satanizados é tibieza. Conhecemos nossa Casa e sabemos que seu
terreno é fértil para ervas venenosas.
Para ser preciso, relembrarei um caso
ocorrido em fevereiro de 1974, pouco antes da posse do general Ernesto Geisel.
Outro dia ele riu muito quando mencionei o episódio.
Um diplomata fez chegar ao gabinete do
presidente eleito uma folha de papel sem assinatura, devastando a vida de seis
possíveis chanceleres de seu governo.
A respeito do embaixador Azeredo da
Silveira, o Silveirinha, dizia o seguinte:
— Não encontrou, até hoje, quem lhe dissesse que ‘de modo que’ e ‘de maneira que’ são locuções invariáveis. Insiste, para suplício dos interlocutores, enunciar que ‘de modos que’, ‘de maneiras que’. [Um de seus colaboradores] pede, no particular, para ser acareado com o embaixador Silveira e afirma que pode fazer revelações estarrecedoras a respeito da cooperação que, no cargo [cônsul-geral em Paris], o embaixador Silveira prestou aos assuntos particulares do presidente Goulart.
A sorte faltou ao diplomata e alguém
identificou-o no verso do papelucho.
Uma semana depois, o mesmo servidor fez
chegar ao gabinete de Geisel outro papel, desta vez assinado. Nele, qualificava
Silveira:
—Grande inteligência, perspicácia,
capacidade de trabalho e experiência na política multilateral e bilateral.
Silveira foi o chanceler de Geisel e fez um
memorável trabalho.
Eu impedi que as bruxas entrassem no
Itamaraty. Numa época em que se cassavam servidores aos lotes, limitei o
expurgo a meia dúzia. Isso num regime de exceção.
Mas não estou aqui para falar bem de mim.
Em 1968, o embaixador Araújo Castro, último chanceler de João Goulart, foi
nomeado embaixador do Brasil nas Nações Unidas e, logo depois, em Washington.
Quando a prática de torturas de presos eram
denunciadas pelo mundo afora, alguns de nossos mais ilustres embaixadores
escreviam cartas a jornais negando que elas ocorressem. Um deles classificou a
acusação de “caluniosa”. Era a instrução que tinham. Pio Corrêa cumpria essa
ordem. Como cavalheiro que era, em 1971 escreveu ao chefe do Estado-Maior do
Exército, general Alfredo Malan, denunciando a tortura e lastimando ter sido
levado a mentir.
A satanização de servidores é geralmente
produto de malquerenças ou cobiças explicáveis pelas diferenças de caráter que
acompanham o gênero humano. Nada podemos fazer para extingui-las, mas, sentados
naquela cadeira, devemos contê-las. Um de seus antecessores prenunciou o
desastre que seria a gestão dele ao remover Vosmicê do cargo de ex-chanceler
para a embaixada na Croácia.
O Brasil de hoje não é o das ditaduras. A
conduta dos servidores deve ser avaliada pela métrica do serviço público, e só.
O marechal Castello Branco mandou para Paris um diplomata da sua estima. Quando
ele ofendeu essa métrica, transferimo-lo para Jacarta.
Saudações fraternais
Vasco Leitão da Cunha
3 comentários:
Elio Gaspari é exímio expert nessa estória de satanização, malquerenças, diferenças de caráter e bruxas.
Satanização é o mesmo que bolsonarização? Pra mim, tudo se refere ao mesmo sujeito...
Carácoles!
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