domingo, 26 de fevereiro de 2023

Cristovam Buarque* - Fósseis vivos da escravidão

Blog do Noblat / Metrópoles

Favelas, racismo, analfabetismo, desigualdade escolar...

O sociólogo brasileiro é antes de tudo um paleontólogo da escravidão. Ao redor, a sociedade é um sítio de fósseis daquele tempo, às vezes parecendo ainda vivos.

As favelas: O próprio nome favela foi criado pelos ex-escravos quando migraram do cativeiro para a liberdade: das fazendas para a periferia de cada cidade. Até hoje são fósseis do que eram as senzalas, com condições sanitárias ainda piores, devido ao descuido com o tratamento dos dejetos humanos e lixo expelidos nas monstrópoles superpovoadas do século XXI.

Os condomínios: Graças ao avanço técnico, 130 anos depois da Abolição, os descendentes-sociais-dos-escravocratas vivem em melhores condições que seus antepassados no tempo da escravidão, e ainda mais desiguais em relação aos atuais descendentes-sociais-dos-escravos. O condomínio, horizontal ou vertical, é um fóssil da casa grande.

Analfabetismo: A permanência de 10 milhões de adultos iletrados, em pleno século XXI, é um fóssil social dos anos de escravidão. Retrato do tratamento educacional dado às pessoas escravizadas e aos seus descendentes sociais, aos quais a escola foi negada, que atravessam a vida adulta em situação de analfabetismo. Fóssil tão vivo que é uma forma de escravidão: está solto, mas não está livre, uma vez que não conhece o mapa que lhe permite caminhar no moderno mundo letrado.

Desigualdade escolar: Durante os 100 anos seguintes à Abolição, o Brasil negou escola aos filhos dos pobres, da mesma forma que negava aos filhos dos escravos. O direito à escolaridade só virou lei no século XXI: Lei 11.700/2008 para o ensino fundamental e Lei 12.061/2009 para o ensino médio, que até hoje não são plenamente cumpridas. Mantém-se o fóssil vivo da escravidão sob a forma da desigualdade entre a qualidade e os resultados da educação conforme a renda da criança pobre em “escola senzala” e da rica em “escola casa grande”.

As empresas de alocação de trabalhadores. O uso sistemático de trabalhadores terceirizados, contratados a um baixo custo por empresas que os alugam a outras empresas ou ao setor público, é cópia de prática escravocrata, quando os proprietários alugavam cativos a outras pessoas. Hoje, o trabalhador livre pode recusar o emprego, mas a prática é fóssil do período anterior à Lei Áurea, porque, na prática, o pobre brasileiro não tem como recusar o emprego, continua acorrentado.

Concentração de renda: O Brasil atravessou toda sua história posterior à Abolição e à República como um dos campeões mundiais em concentração de renda, de patrimônio, de acesso aos serviços sociais, como um fóssil da escravidão. O grau de concentração deixa um abismo e não uma simples desigualdade, uma apartação. Um fóssil do tempo que o país era dividido entre pretos e brancos, agora entre pobres e ricos.

Menino de rua: Antes da Lei do Ventre Livre, o filho de escrava não era abandonado, porque era uma mercadoria, tinha valor de mercado e podia ser vendido. A Lei do Ventre Livre acabou com este valor e começou a tradição brasileira do abandono infantil. A modernização industrial, a urbanização, novos valores sociais e novas estruturas familiares provocaram o fenômeno da infância abandonada, porque no lugar de ter suas crianças na escola, os descendentes-sociais-dos-escravos passaram a depender da renda do trabalho ou da mendicância de seus filhos. O resultado foi que o moderno português falado no Brasil criou palavras como “menino de rua”, “menina da noite”, “prostituta infantil”, “pivete”, como conceitos que não existiam antes de 1888, mas são, mesmo assim, fósseis vivos da escravidão.

Pobres: Em muitos países e sociedades, a pobreza é um fenômeno decorrente da densidade demográfica, da escassez de recursos naturais, do colonialismo recente, até mesmo de características religiosas. No Brasil, a permanência da pobreza é um fóssil da escravidão.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

''A favela é a nova senzala''... Verso de uma música de Lobão.

Anônimo disse...

Uma aula de Brasil. O professor Cristovam sempre nos mostra uma visão nova e profunda da realidade brasileira! Parabéns ao autor e ao blog que o divulga!

Anônimo disse...

Zumbis do PT, se conseguirem leiam e entendam este artigo e procurem o Professor Cristovam para lhes mostrar o caminho a seguir se de fato querem a real justiça social para o povo brasileiro, principalmente os mais pobres. Esqueçam trem bala!!!