sábado, 8 de março de 2025

Duas tolices sem tamanho - Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo

Grande parte dos conflitos e rancores que se formam na sociedade é ortogonal, ou seja, perpendicular ao eixo esquerda x direita

Quem acompanha o dia a dia de Brasília não precisa de uma lupa para perceber que não estamos voando num céu de brigadeiro.

Sabemos que a economia vai mal, com previsão de que o Produto Interno Bruto (PIB) de 2025 crescerá pouca coisa acima de 2%. Em relação à eleição presidencial de 2026, ainda não estamos cem por cento livres das candidaturas de Lula e Bolsonaro, embora a maioria saiba que a reedição dessa tragicomédia é o caminho mais curto para uma tragédia. E o cenário internacional se desarranja a olhos vistos, em razão do oceano de asnices que desabou sobre a outrora exemplar democracia dos Estados Unidos.

Faz um século ou mais que nós, brasileiros, na ilusão de estarmos analisando a vida pública, cultivamos duas tolices sem tamanho: não acreditamos em retrocesso político e acreditamos que a dicotomia direita x esquerda nos explica tudo o que precisamos saber.

Até Lenin, para quem a futura “sociedade sem classes” estava ao alcance da mão, percebeu o risco do retrocesso. Viu claramente que sua própria sucessão poderia esfacelar o Partido Comunista. Em 1924, no leito de morte, pediu a Krupskaya, sua mulher, que entrasse em contato com o órgão máximo de direção do partido. Numa carta de próprio punho ele argumentava que sua sucessão ficaria necessariamente entre Trotsky e Stalin. Trotsky, Lenin disse, era de longe o mais capaz, mas, consciente de sua superioridade intelectual, era vaidoso e nem sempre acolhia pontos de vista contrários. Stalin, de origem modesta, era autoritário, desconfiado e traiçoeiro. O futuro, como sabemos, não coube a Deus; coube a Stalin, que empurrou a revolução num sentido inequivocamente totalitário, cujas raízes sobrevivem na Rússia de Vladimir Putin.

Outro caso de retrocesso sobre o qual o Brasil tinha a obrigação de haver meditado é o da Argentina. Por volta de 1900, era um dos países mais ricos do mundo. O metrô de Buenos Aires começou a circular em 1910, e o país tinha índices educacionais elevados desde a metade do século 19. Um quase paraíso insustentável, porque os argentinos não haviam aprendido o básico: a arte da política. De golpe em golpe, chegaram a Perón e despencaram do alto galho que haviam atingido para o nível em que hoje se encontram.

O leitor por certo já terá percebido aonde pretendo chegar. Em 1967, num livro intitulado Uma Teoria Econômica da Democracia, o economista Anthony Downs demonstrou por A+B por que o sistema político dos Estados Unidos seria imune à instabilidade. Com dois grandes partidos, sem tendências ideológicas delirantes como as da Europa, toda eleição presidencial tenderia para um centro moderado. O partido que radicalizasse suas posições acabaria minoritário, deixando a maioria dos eleitores no colo do adversário. Exatamente como acontecera três anos antes, com o sulista e racista Barry Goldwater, que acreditou num discurso radicalizado contra o experimentado Lyndon Johnson, e foi jogado para fora do ringue.

A situação atual nada tem que ver com a da década de 1960. Os dois grandes partidos nada puderam contra Donald Trump, que não é um mero sulista desprovido de recursos, mas um bilionário de Nova York e ideologicamente um troglodita que se alia a Putin, um egresso da KGB, e não teme pôr abaixo toda a ordem internacional que a duras penas edificamos desde a Segunda Guerra Mundial. Nada nele, absolutamente nada, faz lembrar o exemplo de pluralismo e moderação que o mundo sempre enxergou nos Estados Unidos.

No Brasil, como antecipei, além de não acreditar em retrocesso político (embora já estejamos com ele no pescoço há mais de duas décadas), pensamos que tudo no mundo se encaixa no dualismo esquerda x direita.

Esquerda é quem bate no peito e se autoproclama defensor dos pobres, pouco importando o grau de sua ignorância em economia; direita é quem vocifera contra a esquerda, pouco importando a troco de quê. Nenhum dos dois se dá conta de que uma grande parte dos conflitos e rancores que se formam na sociedade é ortogonal, ou seja, perpendicular ao eixo esquerda x direita.

Por que as indústrias de cosméticos, por exemplo, amealham imensas fortunas? Por que uma grande parcela da sociedade se define como direita ou esquerda? É óbvio que não. Essa parcela gasta fortunas porque se sente feia e acredita que os cosméticos a tornarão tão bonita quanto os bonitos por natureza.

No presente momento, sabemos todos que o PIB brasileiro de 2025 ficará em torno de pífios 2,1% (dois vírgula um por cento), apenas adiando uma crise maior que cedo ou tarde nos atingirá. Mas a eleição de 2026 poderá reeditar a dupla Lula x Bolsonaro: Lula, porque milhões acreditarão que ele, sendo “de esquerda”, detém a chave do progresso; Bolsonaro, porque convencerá outros tantos milhões de que é “de direita”, vale dizer, o oposto de Lula. E assim prosseguiremos, com no mínimo 30% de semianalfabetos, uma força de trabalho de baixíssima qualificação e um Estado incapaz de conter o avanço do crime organizado. Mas felizes com nossas crenças.

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