sábado, 8 de março de 2025

Falhas e tensões mal processadas - Marco Aurélio Nogueira

Revista Será?

Não há nada pior para um governo no meio do mandato do que uma abrupta e consistente queda de popularidade.

Diz a tradição (que remonta a Maquiavel) que governos devem fazer o “mal”, o mais difícil e impopular, logo em seu início, para então poder distribuir benesses ao povo na parte final. Maquiavel falava numa época em que os mandatos não estavam predeterminados e não havia eleições. Hoje, os governantes não têm mais como seguir o conselho maquiaveliano. A vida ficou rápida e imprevisível demais, os problemas se acumulam e não há como programar no calendário as intervenções governamentais. Os governos estão forçados a seguir as imposições do real. Se forem capacitados, desenham um plano bem articulado e procuram cumpri-lo, o que não é fácil.

Além disso, em regimes de competição eleitoral permanente, os governos são arrastados por cálculos voltados para as próximas eleições, especialmente quando podem se recandidatar. Condicionam o desempenho governamental aos movimentos eleitorais, o que torna mais difícil fazer “entregas” substantivas à população. Há muita retórica, muitas promessas e pouquíssimo tempo para que frutifiquem. Com isso, o governo se desgasta, se debate com as mãos vazias.

É esse o enrosco em que se meteu o governo Lula. Ele precisa governar, mas não tem um eixo claro. Precisa produzir resultados para ver se inverte o viés que mina sua popularidade, mas não consegue fazer isso. Abusa da retórica e do palanque, antecipando a disputa eleitoral, e com isso pressiona seus ministros sem conseguir seduzir os eleitores.

A cada dia, a cada queda na popularidade, joga os faróis para a frente. Como se pudesse melhorar seu governo tão somente com articulações eleitorais. Entroniza no Planalto um entourage petista, que promete (como faz Gleisi Hoffman) “conversar com todos os democratas” sem deixar de enfatizar o caminho eleitoral. É contraditório. A luta interna no campo petista repercute no governo, meio que o paralisa, meio que o incentiva a repetir o passado, sem convidá-lo a se adaptar à realidade do mundo atual. 

Defenestrar Nisia Trindade de modo grosseiro, em nome da exigência de que o Ministério da Saúde faça mais política, é sintoma de um governo pouco responsável e pouco generoso. Desarticulado.

Passa-se o mesmo com o ofuscamento de Marina Silva, Simone Tebet e Geraldo Alckmin, melhores expressões da “coalizão democrática” de Lula. No fundo, não é algo de hoje, mas que remonta a janeiro de 2023. O governo tomou posse achando que estava com a bola toda, que bastava a si próprio, erguendo alguns puxadinhos para acomodar aliados e seduzir o Congresso. Obteve recursos orçamentários adicionais (a PEC da transição) e achou que isso definiria o caráter do governo. Viu crescer o déficit fiscal e só não jogou Haddad na fritura (até agora) porque o Ministro da Fazenda tem voo próprio e o governo não tem opções a ele.

O que houve de aliança em defesa da democracia em 2022 não mostrou a cara na primeira metade do Lula 3.0. O governo de coalizão atraiu quase duas dezenas de partidos, que não pensam do mesmo modo. A maioria deles tem caráter fisiológico. Lula se fechou em torno do PT, que responde pelo “núcleo duro” do governo e cria arestas com os aliados. O governo fica entre duas forças, com os aliados correndo para um lado e o PT para outro, sem maior coesão. Difícil manter o vigor reformador nessas condições. Lula faz muita política miúda, mas nenhuma “grande política”. 

Lula reagiu às pesquisas desfavoráveis insistindo na comunicação. Trouxe o publicitário Sidônio Palmeira para o ministério. Mas o problema do governo não é de comunicação, mas sim de definir o que comunicar. O que será oferecido aos diferentes atores sociais? Lula parece acreditar que seus eleitores estão na massa mais pobre da população e que ela continua fiel a seu carisma. Deixou de cortejar as classes médias e o empresariado. Está perdendo apoio em todos os segmentos.

Em vez de ajustar as finanças públicas e reformar o Estado para atacar a inflação (que é de alimentos, mas não só) e bloquear a corrupção, os desvios de dinheiro, as emendas parlamentares abusivas, Lula gasta o verbo para ocupar terreno conhecido: interpela os que comparecem a seus comícios em tom sempre mais raso e popularesco, prometendo mundos e fundos. Abusa do autoelogio e de promessas populistas, na expectativa de que vinguem até 2026.

Lula e seu governo (seus assessores, seu partido) permanecem “polarizando” em sentido paralisante e contraprodutivo. Não veem que a polarização também é de valores, não é mais uma disputa para saber quem faz mais pelo povo. Redes ativas, opiniões e indivíduos soltos, mudanças na estrutura produtiva, revolução tecnológica, tudo abalou os modos precedentes de relacionamento entre governo e população. Não bastam mais entregas econômicas, políticas assistenciais e retórica passional. A população defende os benefícios sociais como direitos, não como “marca” de um governante. Sabe que eles, os benefícios, não serão retirados sem mais nem menos.

Escrevi em A Democracia Desafiada: “Contraposições inflamadas entre povo e elite, ricos e pobres, progressistas e reacionários, indivíduos e coletividades, mercado e Estado, são usualmente manuseadas para que se criem ambientes polarizados ao extremo. Com isso, disputas secundárias (vinculadas em geral à moralidade) assumem o posto principal, deslocando para as margens os temas mais decisivos, que são invariavelmente complexos e demandam entendimentos qualificados”. (p. 124)

Lula tem tempo para se recompor e aprumar. No entanto, se sua opção for enveredar por uma trilha radicalizada, acabará às portas de uma crise. Irá se enfraquecer e ficar ao sabor da vontade do Congresso e do STF. Sua base de sustentação tenderá a se fragmentar e o próprio PT assistirá ao aguçamento da luta entre suas correntes internas.

O governo alega que falha na comunicação e que o povo não sabe o que está sendo realizado. A propaganda se dedica a dar brilho ao que está opaco, a corrigir falas destrambelhadas de integrantes do governo e a promover a figura do presidente. Como não há projeto de governo, a comunicação tem pouco o que dizer. Ela também passa a girar em torno da preparação para a próxima disputa eleitoral. 

A comunicação governamental é, evidentemente, utilíssima. Mas não salva a lavoura, nem serve para baixar a inflação. Ela é unilateral e pode conter doses excessivas de má informação, de manipulação e distorção. Não interpela os cidadãos, não os leva a pensar criticamente ou a ver as cartas que estão sendo postas na mesa. Glamouriza o que o governo diz estar sendo feito.

Para complicar, há o Judiciário, o STF e os órgãos de controle, que mandam muito mais do que deveriam e fazem política livremente, com o que vão adquirindo poder sempre maior, submetendo a si o Congresso, os estados, as prefeituras e, evidentemente, o Executivo. Por essa via, o STF pesa desproporcionalmente no pouco que há de debate público. 

O governo ora se entrega ao STF e capitula, ora tenta comer pelas bordas. Anuncia ideias e projetos tópicos, recompõe o ministério, cede aqui e ali, bate na mesa, faz cara de mau para os grandes e suaviza quando deseja adular as multidões, mas não executa praticamente nada, como se não tivesse braços políticos ou não soubesse empregá-los. 

Vai, desse modo, cavando uma cova na qual se refugia e tenta respirar.

 

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